“O lugar da mulher negra é onde ela quiser!”

Hoje começamos a série Mulheres Negras: do centro à periferia. Esta é uma série construída em parceria entre o Centro Sabiá e o Terral Coletivo de Comunicação Popular, como forma de marcar o mês da Consciência Negra. Todos os textos que integrarão a série serão escritos por jornalistas negras do Terral e terão como entrevistadas mulheres negras. O nome da série faz uma relação com centro e periferia não somente como espaços geográficos, mas nos sentidos de provocar a reflexão sobre o lugar das mulheres negras. Afirmando o papel central das mulheres negras na construção da sociedade, mas que em geral são colocadas à margem, à periferia, ou seja, sua centralidade na construção de mundo é sempre renegada e ela passa a não se enxergar nessa centralidade, mas à margem. Por isso, neste primeiro texto da série, tratamos da questão do lugar da mulher negra. 


Vivian Motta e Taísa Silveira se reafirmam como mulheres negras todos os dias / Fotos: Márcia Gabriel e Mônica Silveira  

por Catarina de Angola – comunicadora do Terral Coletivo de Comunicação Popular

Fomos educadas para respeitar mais ao medo
do que a nossa necessidade de linguagem e definição,
mas se esperarmos em silêncio que chegue a coragem,
o peso do silêncio vai nos afogar. 

Audre Lord

Qual o lugar da mulher negra? “O lugar da mulher negra é onde ela quiser!”, diz incisivamente a professora Vivian Motta, 40 anos. No entanto, nem sempre conseguimos começar a contar as nossas histórias a partir do nosso desejo. Vivian sabe disso e por isso reforça: “mas para ela ocupar o lugar que ela quer, tem que ter uma oportunidade diferente. Não adianta achar que é criar um processo de meritocracia e que elas vão chegar. Eu quero ter acesso à oportunidade de mostrar meu potencial, não adianta eu construir o meu caminho e as oportunidades serem negadas”.

Somos mulheres negras, mas nem sempre foi tão fácil nos reafirmar assim. Muitas vezes só nos reconhecemos ao longo da vida, ao longo das diversas vivências que temos. Isso acontece porque aprendemos a não nos reconhecermos como pessoas negras. Porque o negro é visto como algo ruim na sociedade. 

Nossa história começa a ser contada a partir da escravidão, como se fôssemos naturalmente escravos e escravas. Resquícios do processo de colonização pelo qual o Brasil passou e que escravizou pessoas negras por quase quatro séculos. Eu mesma já escutei por diversas vezes ao longo dos meus 29 anos: ‘E você é negra? É não, não diga isso! Você é moreninha”. Me dizem isso como se me identificar pessoa negra fosse um insulto a mim mesma, isso foi uma ideia naturalizada no Brasil e que fica acobertada no mito da democracia racial. A jovem agricultora Franceli Gomes, 20 anos, também passou por um processo de se reconhecer como mulher negra. “Aprendi a me reconhecer como mulher negra nos espaços onde convivemos, nas formações, nos encontros. A gente quando se engaja na luta começa a se identificar como negra. Eu me identifico como negra, mas a sociedade me rótula como morena por mais que eu deixe claro que sou negra”, conta.

Nós mulheres já sentimos diariamente o peso de uma sociedade machista, que nos diminui, e quando somos mulheres negras nos determinam um lugar de forma mais demarcada, e ainda estamos em último lugar na escala social. “É muito importante da gente pensar esse nosso lugar social, pois a sociedade que é patriarcal, racista e misógina termina determinando alguns papéis não só de gênero, mas sociais para determinados sujeitos”, afirma a jornalista Taísa Silveira, 30 anos. Mesmo após a abolição oficial da escravatura, as mulheres negras continuaram tendo seus lugares determinados pela sociedade e fomos sempre silenciadas. As negras que foram escravizadas serviam aos senhores e senhoras de engenho a partir dos trabalhos nas lavouras ou na casa, além de serem constantemente violentadas e estupradas pelos patrões. Com a abolição, passaram a continuar servindo como empregadas domésticas nas casas dos brancos. O lugar que sempre foi dado as mulheres negras foi o da negação de direitos, da invisibilidade, do servir aos outros. “Eu acredito que esses lugares nos foram impostos, quando a gente sai dessa estrutura isso causa um incômodo”, pontua Taísa.

No entanto, o lugar que realmente é nosso é o de sujeitos de direitos como qualquer outra pessoa, que sempre carregou e carrega várias tarefas que são base para a construção da sociedade. Trabalhamos mais, sempre trabalhamos em casa e fora das nossas unidades familiares, mas temos os menores salários, os menores índices de educação, somos a maioria da população pobre. Isso fruto dos anos de escravidão e pela nossa condição de ser mulher. Por isso Vivian afirmava acima que precisamos de um olhar diferenciado, ou seja, precisamos de políticas que enxerguem as especificidades da mulher negra, é necessário um olhar interseccional, pois raça indica classe no Brasil, por exemplo. Sem isso nunca teremos nosso lugar de centralidade reconhecido na sociedade. Viveremos sempre na periferia, ou seja, à margem. 

A grande carga de trabalho a qual sempre fomos submetidas fez criar-se também o mito de que a mulher negra é mais forte e mais tolerante a dor. “A gente nunca teve tempo de cuidar da gente. Além do estereótipo de ser raivosa, hipersexualizada ou a que tudo aguenta, que não vai se deixar abater. E essa crença sobre nós, de que nós somos fortes, isso nos adoece muito”, explica Taísa. E continuamos a sofrer violência todos os dias. No Brasil, a morte de mulheres negras aumentou cerca de 54% de 2003 a 2013. É o que indica o Mapa da Violência, divulgado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), no final do ano passado. Já a morte de mulheres brancas, no mesmo período por violência diminuiu em 10%.

Mas a violência diária a que estamos submetidas não é apenas a física, o racismo também nos violenta brutalmente. “Já escutei em sala de aula o professor dizer que ia repetir o que tinha falado ‘porque tinha gente mais escurinha na sala’”, lembra Vivian sobre a época em que cursava engenharia agronômica. “Era porque eu era mulher e negra, dois processos de violência. Nada era suficiente para que eu me comparasse com os demais”, afirma. Hoje, mesmo já lecionando em uma instituição pública federal, não deixa de passar por situações de discriminação racial. “O racismo institucional existe, como em não conseguir acessar certos espaços. Todos os gestores são brancos. Na minha unidade eu sou a única mulher negra. É como se dissessem que certos espaços não são para mim”, afirma Vivian. 

O racismo é estrutural de nossa sociedade, mantém o status dos privilegiados, uma forma de manter a estrutura da sociedade como está, sem mudanças. Está presente em nossas vidas e nos deixa marcas, ele se expressa de diferentes formas e, inclusive, na omissão. “O racismo está presente em todos os lugares. É um olhar diferenciado, é uma forma de tratamento. O racismo não é só uma discriminação do cabelo, por exemplo, ele é estrutural da nossa sociedade, ele dita como as regras sociais e econômicas vão se dar, como as relações vão acontecer privilegiando um e não o outro. Nós mulheres negras ganhamos menos, sofremos mais violência obstétrica. O racismo é maior do que nós. Não é a toa que ele mata jovens negros. Ele não é invencível, mas ele está na nossa sociedade que nos mata, nos silencia e nos adoece”, afirma Taísa.

O nosso lugar, de mulheres negras é onde quisermos estar. Podemos ser agricultoras, jornalistas, professoras, engenheiras agronômicas, como todas as mulheres que tiveram suas falas e histórias apresentadas aqui neste texto. Podemos ser mulheres negras que contam nossas próprias histórias, mas para isso precisamos urgentemente “criar consciência pública de não tolerância ao racismo e acelerar respostas institucionais concretas em favor das mulheres negras”, como afirmou em outra entrevista* a filósofa Djamila Ribeiro, que também é secretária-adjunta de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo.

“Por que o feminismo negro é necessário? Porque temos que ser protagonistas das nossas próprias narrativas”, afirma Taísa. 

 

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