“Através da Imagem você democratiza os Saberes”
O professor da UFRJ Beto Novaes considera o audiovisual uma ferramenta importante na devolução dos
trabalhos acadêmicos para a sociedade / Foto: Laudenice Oliveira – Acervo Centro Sabiá
Por Laudenice Oliveira (Centro Sabiá)
Ele defende que as imagens, além de democratizar os saberes também despertam consciências e levam as pessoas a refletirem criticamente sobre a sua realidade. É assim que pensa e realiza o seu trabalho o professor de economia da Universidade do Rio de Janeiro e cineasta Beto Novaes. Ele esteve no Recife para fazer o lançamento do seu novo documentário As Sementes, que tem como protagonistas mulheres agricultoras feministas do movimento agroecológico brasileiro. De passagem pelo Centro Sabiá, para uma Roda de Conversa com comunicadores/as de movimentos sociais, ele concedeu esta entrevista. Ele fala sobre suas ideias, seus projetos, seu olhar sobre a necessidade de construir processos de formação onde a academia e os movimentos sociais dialoguem para construir o confronto ideológico necessário para gerar mudanças.
O Canto do Sabiá – Gostaria que você falasse sobre esse projeto de unir a academia com as lutas populares para fazer um diálogo onde a academia bebe nos movimentos e os movimentos bebem na academia, utilizando a imagem como uma forma de devolução mais criativa para os movimentos sociais.
Beto Novaes – Eu coordeno um projeto que se chama Educação Através das Imagens. Começamos em 1979, quando eu trabalhava na Universidade Federal da Paraíba e a gente fazia assessoria ao movimento sindical de lá e fizemos uma pesquisa no Sertão da Paraíba sobre a decadência do algodão. Na época tinha um pessoal que trabalhava com cinema lá em Campina Grande. Foi aí que surgiu a ideia de fazer um filme, pra a gente devolver para os sindicatos, para os trabalhadores que nos ajudaram a fazer a pesquisa, o resultado dela. Fizemos um filme de 16 milímetros chamado O que eu Conto do Sertão é Isso. Resolvemos montar na universidade um esquema de apoio aos dirigentes sindicais que queriam fazer a exibição para sua base. Começou a existir uma interação mais concreta e a gente ia pra lá, exibia o filme, conversava com as pessoas. A partir desse diálogo percebemos que as pesquisas acadêmicas não podiam ser uma elaboração dentro da academia. Ou seja, como você trazer essa problemática para dentro da universidade, refletir, sistematizar e voltar com o conhecimento. Isso foi um grande desafio pra gente. Porque você cumpre todo o ritual acadêmico, vira doutor, sua tese cumpre as exigências acadêmicas e fica armazenada, guardada e pode até virar um arquivo morto. Você não consegue disseminar isso, mesmo porque a linguagem acadêmica é de difícil compreensão, principalmente para a área rural. Aí começou a surgir a ideia de como utilizar a imagem para gente integrar nesse projeto ensino, pesquisa e extensão. Fazer a extensão universitária tendo a tese como roteiro para fazer documentário. A universidade foi se abrindo para o movimento e as pessoas foram se apropriando de um outro saber para elaborar isso teoricamente e devolver. Se você for fazer uma pesquisa sobre as teses de mestrado que foram produzidas na Sociologia e na Economia de Campina Grande, durante um período, as teses todas refletem a luta pela reforma agrária, conflito de terra, ligas camponesas, mapeamento histórico dessas lutas, personagens que estavam dentro desse contexto.
OCS – Você saiu da Paraíba, foi para a Universidade Federal do Rio de Janeiro e leva essa ideia para lá. Como isso chega lá? Qual o impacto dessa forma de pegar a tese, de fazer roteiros para documentários?
BN – Esse é o único projeto de extensão que existe no departamento de Economia da UFRJ, porque os professores não estão habituados, eles estão habituados a fazerem pesquisa. A extensão começou a tomar corpo nos últimos anos dentro da Universidade. Porque a extensão não era tratada no mesmo nível da pesquisa, a pesquisa tinha um impacto acadêmico muito maior que a extensão universitária.
OCS – Por quê?
BN – Porque eu acho que na universidade se pensa como centro de elaboração teórica. Você não estuda a teoria como um instrumento, como um referencial para você tentar entender a dinâmica da sociedade. Então você tem um debate teórico que tá divorciado da práxis social. E essa interação é fundamental, tanto para o movimento quanto para a academia. Eu estou falando isso da universidade de uma forma genérica, mas a universidade não é uma forma genérica, a universidade permite que você faça diferentes pesquisas. Mas para as questões sociais tudo é difícil, não tem dinheiro, você trabalha mais como voluntário. Agora, você tem dentro da universidade muitos professores que trabalham numa perspectiva de abrir os muros para os movimentos sociais. Mas a gente sente uma dificuldade muito grande em fazer pesquisa. Hoje em dia, a exigência curricular da universidade impede você de refletir sobre o que você tá lendo. O aluno faz 7, 8, 9 disciplinas e vão lendo capítulos de livros e não conseguem mais contextualizar uma obra – por que ela foi produzida, qual o debate que ela traz. Enfim, a gente levou essa experiência de Campina Grande para o Rio de Janeiro. A gente fez um projeto de extensão universitária e começamos com o trabalho infantil, trabalhando com escolas de lá. Montamos uma exposição fotográfica, com fotos de João Roberto Ripper, Paula Simas e Iolanda Ruzac, que andavam o Brasil todo fotografando crianças trabalhando. E, começamoss a produzir alguns documentários sobre o trabalho infantil: Sonhos de Criança, Conversas de Criança, Meninos da Roça. E com esse material a gente resolveu fazer um evento voltado para as escolas. Para formar monitores, incorporar multiplicadores, estudantes. Eles formavam grupos para receber as escolas e cada uma delas vinha com 40 alunos que ficavam duas horas na exposição. Foi uma experiência fantástica. Quando terminamos esse projeto a OIT (Organização Internacional do Trabalho) quis transformar o projeto num projeto itinerante, levar para 32 estados do Brasil. A metodologia era a mesma e a gente foi de Belém a Porto Alegre com essa exposição em três anos. Então, a gente vai mergulhando na realidade e esse projeto foi alimentando a gente. Começaram a surgir vários outros temas que a gente começou a trabalhar nessa perspectiva. Mas trazer as imagens pro ensino, para dentro da academia é complicado, para dentro do movimento sindical é complicadíssimo, porque mesmo nos encontros que você tem, você não usa a imagem como instrumento de reflexão. É sempre assim: se coloca três, quatro assessores para falar e os caras falam e quando sobra um espaço lá à noite, aí falam: – não, bota lá um vídeo pra gente ver.
Comunicadores e comunicadoras participaram de roda de conversa com Beto Novaes na sede
do Centro Sabiá, em Recife / Foto: Laudenice Oliveira – Acervo do Centro Sabiá
OCS – Você trabalha muito essa abordagem de que a imagem é necessária para gerar reflexão e defende o seu uso para trabalhar a conscientização, levar para a sociedade as lutas que os movimentos sociais estão fazendo. Por que você acha que a imagem é mais importante nesse processo do que uma reflexão mais oral?
BN – Porque eu acho que através da imagem você democratiza os saberes. O documentário é um instrumento fundamental para fazer isso. As pessoas vão ver o documentário e cada uma vai expressar o seu olhar sobre o que está vendo. Você muda a dinâmica do ensino, não é mais o professor que detém o saber e transmite o conhecimento e o outro recebe. A imagem permite uma interpretação e uma análise a partir do conhecimento que você tem no momento. Isso permite diferentes olhares sobre um mesmo tema. E esses diferentes olhares depois você pode trabalhar a síntese disso e pode sistematizar a partir de uma reflexão. É aí que eu acho que a imagem permite a reflexão. O tempo da reflexão não é o tempo da eficiência, da previsibilidade. A gente tá sem tempo de refletir na sociedade atual. Vivemos num mundo de imagens, mas sem saber utilizar essas imagens. Hoje você pode fazer uma tese de doutorado no seu quarto, é só acessar a internet que você encontra tudo. Agora, e o processo de elaboração, de reflexão do que você tá fazendo? Você não tem tempo. Faz uma colagem e manda para cumprir formalidades. Acho que a imagem permite o tempo da reflexão.
OCS – Essa história da imagem toca muito a juventude. Que papel você acha que tem a juventude, nesse ato de olhar, de observar e de sentir a necessidade de refletir também sobre o que está vendo?
BN – Esse é um tremendo desafio que a gente tá enfrentando. Tivemos uma experiência concreta com um filme que se chama Pé no Formigueiro, sobre um encontro de jovens em Brasília, organizado pela Secretaria Nacional da Juventude. Eu passei quatro dias lá, antes do encontro. Eles levantaram uma pauta de discussão sobre a juventude rural, quais os principais problemas, como resolver os problemas e tal. E lá tinha ministro falando, secretário falando e aquelas mesas formais e os jovens sentados. E tinha uma parte que era assim: atividade cultural, para que cada estado levasse uma peça, música, dança. Aí o que eu fiz, cortei todas as mesas e só deixei a parte cultural. Porque a música Pé no Formigueiro todo mundo conhece, todo mundo cantava. E as reivindicações que eles botaram foram bastante atualizadas, mas colocaram num viés cultural e não de formalidade, porque nenhum jovem suportava. Agora, o grande desafio é como a gente pode usar esses instrumentos, como instrumento de denúncia, de registro de fatos cotidianos da sociedade. Nesse sentido, a gente que está muito ligado aos movimentos sociais tem que utilizar esses instrumentos para fazer um confronto ideológico, acho que é isso que está faltando. Porque muitas vezes o menino entra para fazer as coisas pelo prazer de ver a imagem, pela estética da imagem, mas essa imagem tem que ter uma mensagem. E eles precisam ter uma formação para poder depurar essa imagem com sua mensagem.
OCS – Aí entra o que você defende, que é fazer formação de jovens multiplicadores para trabalhar com conscientização a partir da imagem.
BN – Exatamente. Porque é um investimento financeiro muito baixo. Você entra no Youtube, baixa os documentários e faz cópias do que tem, monta um acervo e faz oficinas de imagens, discutindo esse material, preparando pessoas para replicar isso nas escolas, nos grupos de pesquisas das universidades e por aí vai. Eu acredito muito nesse projeto multiplicador, onde você descentraliza tudo. Antigamente o maior problema nosso em produzir imagem era produção, o custo era caríssimo, os equipamentos muito complexos. Mas hoje em dia você pode fazer uma edição na sua casa. Hoje o problema é o que fazer com a imagem e a distribuição. A gente percebe que tem uma rede de distribuição de documentários, de música, de cinema que faz o circuito das feiras aqui pelo Nordeste. Aquilo que chamam de pirataria. As bandas estão fazendo isso. E essa forma é a eficiência de uma estratégia comercial fantástica, porque a banda se populariza e depois vai fazer seus grandes shows, ganhar dinheiro.
OCS – Há ainda a questão sobre os temas a trabalhar com as imagens…
BN – Eu acho que isso é uma questão importante. Porque quando você vê a mídia normal, a informação que circula na sociedade que forma consciência, não forma consciência crítica, porque a mídia tá comprada. Um dos temas que trabalhamos foi o Agrotóxico no meio ambiente, nós fizemos um documentário lá no Mato Grosso que trata da saúde dos trabalhadores que estão jogando os agrotóxicos sem a proteção adequada, ou da população que fica no entorno dessas grandes plantações. As matas ciliares estão sendo todas destruídas, as nascentes sendo contaminadas e essa água é a que os índios vão tomar lá quando o rio desce para as aldeias e para as populações ribeirinhas. A gente traz esses elementos para mostrar o contraditório das informações e instrumentalizar a pessoa que tá vendo na mídia para ela ter uma visão crítica do que tá vendo e não incorporar aquilo como sendo a única verdade. A gente também trabalha com o resgate de memória. As pessoas quando entram no movimento, parece que o movimento começou a partir da sua entrada. Mas o movimento tem história. Como resgatá-la, como fazer os jovens entenderem que isso é um processo de uma sociedade capitalista que vai mudando a forma, os mecanismos de exploração com o avanço da tecnologia. Então, não dá para parar numa análise cotidiana, onde os problemas são imensos se você não trabalha a história numa perspectiva de processos. Assim, você vai perder as utopias, porque as histórias do cotidiano são tão sérias para serem enfrentadas que você não consegue resgatar o passado.
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