Entrevista – Reforma da Previdência: uma tremenda perversidade


Para Verônica Santana a reforma da previdência é um golpe nas mulheres rurais | Foto: Laudenice Oliveira/Centro Sabiá

Para trabalhadoras e trabalhadores rurais as regras ferem o princípio da sobrevivência dos seres humanos

Por Laudenice Oliveira (Centro Sabiá)

O Projeto de Emenda Constitucional 287 (PEC 287), mais conhecida como Reforma da Previdência, apresentado pelo atual presidente Michel Temer, traz mudanças que mexem com a seguridade social de todos os brasileiros e todas as brasileiras. As mudanças são drásticas para todos e todas que já pagam o pato dos problemas vivenciados no Brasil há anos. Porém, há um grupo da classe trabalhadora que sofrerá os maiores impactos, a mulher e o homem do campo. De cara, a mulher trabalhadora rural vê a possibilidade de aumentar em dez anos a idade para se aposentar. Saindo de 55 para 65 anos. A agricultora e também coordenadora do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTR/NE), Verônica Santana, expõe nesta entrevista o quanto será perversa a Reforma da Previdência para a população do campo, em especial para as mulheres. Acompanhe.

O Canto do Sabiá – A Reforma da Previdência mexe, em especial, com os direitos das mulheres rurais, como vocês estão vendo essa mudança?

Verônica Santana – A gente já fez várias discussões e continuamos fazendo. A gente se preparou, especialmente no 8 de março (dia Internacional da Mulher), e fez mobilizações em todo o Brasil, e o foco foi a ocupação dos Institutos Nacional de Seguridade Social (INSS). Foi uma forma de unificar a luta das mulheres em torno dessa pauta da Reforma da Previdência. E o que é que a gente tá dizendo? Que de todas as perdas, de todas as reformas que esse governo golpista tem feito, essa tem se mostrado a mais perversa, principalmente para as mulheres e toda a população do campo. Há questões que são muito preocupantes e que a gente acredita que não tem condição de passar essa reforma desse jeito. Uma é igualar a idade. Ela é injusta quando iguala a idade de quem mora na roça com a idade de quem mora na cidade. E ela também é injusta quando iguala a idade dos homens à idade das mulheres. 

OCS Na realidade, as mulheres do campo serão as mais prejudicadas. Serão duas perdas. A primeira, quando iguala a idade homem e mulher, já que as mulheres urbanas, hoje, podem se aposentar com 60 anos, o que com a Reforma passaria para 65 anos tanto para homens como para mulheres. E a segunda, quando a mulher rural perde o direito de se aposentar com 55 anos, ficando no grupo dos 65 anos.

VS – Então, só de tacada para as mulheres rurais são dez anos a mais, e usando o argumento do próprio movimento de mulheres que é a luta pela igualdade. Sendo que isso não é igualdade, nem privilégio. A diferença na idade de aposentadoria de homens e mulheres é uma forma de reparar todo o trabalho que as mulheres fazem ao longo da sua vida que são as duplas, as triplas jornadas de trabalho. Já estão comprovadas por várias pesquisas reconhecidas, de que nós mulheres trabalhamos em média cinco horas a mais do que os homens. Então, é uma forma de reparar esse tempo. Não é nenhum privilégio. Isso quer dizer também que, com esse aumento da idade, nos próximos dez anos nós não teremos praticamente ninguém se aposentando no meio rural. 

OCS – Isso vai refletir também nos municípios pequenos do interior dos estados, não é?!

VS – Se a gente pensar que a economia de muitos municípios pequenos gira em torno, principalmente das aposentadorias, em especial da aposentadoria rural, isso vai causar um empobrecimento tremendo nesses municípios. Principalmente, o empobrecimento das mulheres. Essa Reforma vai aumentar esse empobrecimento e a falta de autonomia econômica das mulheres. E ainda tem o lado da juventude que fica sem nenhuma expectativa de permanecer no campo. Ela vai abandonar esse campo. Eu acho, e muitas pessoas partilham dessa ideia, de que por trás disso existe um projeto de esvaziar realmente o campo, para que seja um campo sem gente. Vai aumentar as populações nas periferias, vai ter, principalmente, o aumento da violência, mais demanda por moradia e as cidades vão ficar mais insustentáveis do que já estão. 

OCS – Quando você fala do empobrecimento, por exemplo, das cidades pequenas, já que sua economia gira em torno, em muitos casos, das verbas de aposentadorias, e que a maioria dessas aposentadorias é de mulheres, há outro rebatimento aí, que é a questão da pensão por morte. Por exemplo, a mulher que perde o marido, o companheiro, a aposentadoria dele que passa a ser a pensão para a mulher, não vai ser de 100%. Ou seja, ela não receberá o valor integral. E a gente sabe que a maioria das aposentadorias e pensões rurais gira em torno de um salário mínimo. 

VS – Exato. Essa é outra questão. E vamos fazer uma reflexão bem importante: o salário mínimo, é mínimo. O nome já diz, mínimo. Então, como você pode prever uma coisa que é menos do mínimo? O mínimo é o teto para não se passar fome. E aí vem uma pensão que, primeiro, ela não é mais vitalícia. Conforme tá na proposta da Reforma, a pensão é pela metade, 50%, a partir do número de filhos menores que a mulher tiver, aumenta 10% para cada dependente. Então a pensão vai ser, metade do mínimo, mais 10% para cada dependente. Mas, quando o filho ficar de maior, esses 10% não voltam para o próximo filho que tiver ou para a mulher. Ele acaba. É uma forma de ir tirando a mulher totalmente desse amparo.

OCS – É importante ressaltar que é uma situação que vai atingir as mulheres que vão ficando mais envelhecidas. A maioria já não tem filhos pequenos, os filhos já estão vivendo suas vidas, o marido ou companheiro, às vezes morre primeiro, elas ficam com a pensão deles e vai ficar com apenas 60% do valor total. Considerando que são 50% da pensão mais 10% para cada dependente e a mulher é considerada uma dependente.

VS – Pra você ver que, realmente, no momento que falta nossa força de trabalho, nossa energia, depois de toda uma vida dedicada a trabalhar para a sustentabilidade da sociedade, porque nós do campo começamos a trabalhar com dez anos, doze anos, catorze anos. A gente não tem feriado, não tem décimo terceiro, não tem férias. No momento que as nossas forças, nossas energias já começam a fraquejar, que precisamos desse amparo, eles querem tirar da gente. Quando tudo isso foi fruto de muita luta de nós mulheres, que conquistamos a partir da Constituição de 1988. Foi fruto de uma luta, ela é justa, porque ela nos ampara no momento que a gente não tem mais condições de trabalhar, depois de ter dedicado toda uma vida, principalmente na produção de alimentos para todos da família, mas também para quem tá na cidade. É de uma perversidade tremenda.  O que tá sendo proposto é de você não se sustentar nem na cidade, nem no campo. Muitas vezes, é a partir dessa renda que a gente tem, que a gente investe nesse espaço rural, que a gente investe pra ter uma melhor moradia, ter produção, ter alguns equipamentos para aliviar esse nosso trabalho, é a partir dessa renda também.

OCS – Há um discurso de que precisa refazer a Previdência para o setor rural, principalmente, porque o rural não contribui para a Previdência. 

VS – Isso é uma coisa que a gente tá procurando desmistificar nas várias mobilizações que a gente tem feito, porque isso é uma mentira, pois nós contribuímos. A forma que a gente contribui é uma forma diferenciada, ela  não é  individualizada. É muito importante para as pessoas que estão na cidade entenderem isso. A nossa forma de contribuição é coletiva, é a partir da nossa produção. Como é que isso se dá?  Tudo o que a gente produz e tudo o que se come, feijão, arroz, farinha, carne, ovo, tudo que é comercializado, 2,1% dos impostos que são recolhidos de tudo que vai para feira, que vai para o supermercado, deve ir para Previdência. Para quando a gente precisar acessar essa Previdência a gente ter esse fundo. Agora o governo diz que a gente não contribui e que esse dinheiro não é suficiente. Aí a gente precisa levantar uma questão. O governo tem o que eles chamam de DRU, que é a Desvinculação das Receitas da União. No governo de Fernando Henrique Cardoso ele desvinculou 20% dessa receita, Temer agora desvinculou mais 10%. Hoje há 30% desvinculados. Ou seja, de todos os impostos, de tudo que era para sustentar a Assistência Social e a Previdência o governo retira 30% disso. A gente pergunta: como é que essa Previdência é deficitária, ela não tem condição e o governo ainda retira 30% disso? Uma das coisas que a gente conseguiu desmistificar foi isso, que o rombo da Previdência não existe. Para o fundo da Previdência estão previstas três fontes: dos trabalhadores e das trabalhadoras, das empresas e do governo. O trabalhador e a trabalhadora não têm o direito de dizer pra a empresa que não quer contribuir. Se você tem carteira assinada tem que contribuir. Quando você vende um produto, você não pode dizer que não paga o imposto. Tá lá descontado. E onde está a parte que o governo recolhe das empresas? 

OCS – Para deixar mais claro ainda, as famílias agricultoras contribuem para a Previdência. É uma falácia dizer que não.

VS – Essa história de que nós não contribuímos não é verdadeira. A nossa contribuição é coletiva, é a partir da nossa produção. Além disso, a gente entende que quem produz é toda a família, então toda a família contribui ao longo de uma vida. Quando o governo propõe essa contribuição individualizada, quer dizer que cada membro da família, vai contribuir individualmente. E a gente não tem condição. Não é assim que funciona no rural. E nessa relação de desigualdade de gênero, que a gente ainda tem muito no rural, serão privilegiados sempre os homens nessa renda individual. Hoje existe um debate de quanto seria esse pagamento. Tem quem diga que serão 50 reais, outros dizem que serão 150. A nossa preocupação é: o que seria hoje na nossa economia do rural, na nossa situação de Nordeste, de seis anos de seca, retirar todos os meses de uma família uma quantia individual dessas? Toda a família será penalizada, mas nós mulheres já estamos vendo que seremos as últimas na lista a ter esse recurso para pagar essa Previdência.

OCS – Diante desses impactos todos, quais são as iniciativas das mulheres, dos trabalhadores e das trabalhadoras do campo para barrar essa Reforma?

VS – Primeiro uma grande mobilização para criar o entendimento do que significa essa Reforma da Previdência, porque pra muitas de nós ainda era confusa e agora tá ficando mais evidente. Isso, porque os meios de comunicação começaram a divulgar que existe um rombo na Previdência e que é preciso a Reforma, para assegurar quem vai se aposentar no futuro. Claro que todo mundo quer no futuro se aposentar. Então, houve muita confusão em nossa cabeça do que significava essa Reforma. Mas a partir do 8 de março, que a gente mobilizou o Brasil, tá havendo muita movimentação. A gente já tá vendo quem tá propondo essa Reforma e que tá querendo aprová-la. O governo aposta muito de que nós do rural somos um povo que as informações demoram a chegar, que a gente se mobiliza de forma mais lenta e que a gente não vai reagir. A gente tá querendo mostrar que é o contrário, que nós temos condições, que nós estamos reagindo e que nós estamos mostrando força de mobilização. Estamos entendendo que a partir do meu local, do meu município, eu posso exercer também uma pressão sobre os prefeitos, sobre os vereadores, sobres todos os deputados. Entendendo que todo vereador e todo prefeito é cabo eleitoral, que todo vereador e todo prefeito pertence a um partido político. E precisamos chegar junto e dizer, qual o seu posicionamento? Pensar que a pressão acontece na rua, nas grandes mobilizações, feito a que aconteceu no dia 15 de março. São várias frentes. Mas que precisamos também fazer pressão a partir de onde estamos na associação de moradores, a partir da minha ação local, até do meu grupo de oração. Em todo canto é possível exercer uma pressão e uma discussão sobre o que tá em jogo. Relacionar isso também com o golpe. Com toda essa perda de direito. A reforma tem nos proporcionado entender uma dimensão nacional de como no local a gente pode fazer uma pressão e reverter essa situação. A luta continua em abril, a gente não vai fechar os olhos em nenhum momento, nem dar trégua, porque uma trégua nossa significa uma perda de direitos. Estamos todas e todos alertas. A luta é na rua, mas a luta é também na nossa casa, na escola, em todos os cantos.   

 

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