Terra de Vidas: “O que antes ia pro esgoto, hoje vira alimento pros bichos!”
Foto: Luca Zanetti
Por Carlos Magno Morais e Rivaneide Almeida
A água tem sido tema permanente no pensar e no agir das organizações e comunidades rurais do Semiárido brasileiro. Construir formas para a convivência com e nesse ambiente é um desafio que vem sendo encarado, com propostas criativas e acessíveis, a exemplo das cisternas de placas utilizadas para estoque de água potável e para a produção. No entanto, a convivência com o Semiárido se torna possível a partir de um conjunto de estratégias, tendo como bases importantes o acesso à terra, respeito pelo ambiente natural e o estoque de água, sementes e alimentos. Tudo isso num cenário de mais de sete anos de estiagem, processos de desertificação preocupantes e mudanças climáticas que agravam fenômenos como a irregularidade das chuvas.
Considerando todo esse cenário, estocar água e otimizar a sua utilização torna-se um caminho estratégico e que precisa ser fortalecido, especialmente no âmbito da agricultura familiar. Ainda nessa direção, uma atividade de forte potencial e estratégico para a resiliência das famílias agricultoras é a criação de pequenos animais, prática que exige estoque de forragem principalmente nos períodos de escassez de água. Foi a partir dessas reflexões que surgiu o Projeto Terra de Vidas, que propõem a instalação de sistemas de reúso de águas cinzas (RACs) utilizando a água do banho, de lavar roupa e louça, da pia do banheiro que antes era despejada a céu aberto para irrigação de Sistemas Agroflorestais (SAFs) que também foram implantados pelo projeto tendo como prioridade a produção de espécies forrageiras adaptadas a realidade climática do Semiárido, que são aquelas utilizadas para alimentação dos animais.
O projeto, apoiado pela Cáritas Suíça, envolve 100 famílias dos Sertões do Araripe e Pajeú, numa parceria entre o Caatinga e o Centro Sabiá, que assessoram essas famílias, a partir de práticas pedagógicas, como intercâmbios, oficinas, mutirões e acompanhamento individual. Teve início no primeiro semestre de 2018, e até o momento foram implantados 100 SAFs e construídas a mesma quantidade de sistemas para RACs. As famílias estão em 43 comunidades, distribuídas em 06 municípios desses territórios, junto às quais foi realizada uma caracterização, como forma de conhecer melhor suas realidades e traçar um perfil que ajudasse nas decisões de execução do projeto.
Identificamos que a maioria dessas famílias já fazia uso de parte dessas águas cinzas para aguar frutíferas e/ou capins, porém sem nenhum tipo de tratamento, ou seja, era utilizada da forma como saía das casas, com gorduras, detergentes, sabonetes, sabões, entre outros. Essa é uma realidade ainda muito presente no campo, onde não há saneamento básico. Dessa forma os RACs chegam como uma alternativa tanto para reaproveitar a água na irrigação, quanto para proteger o solo, a água e a saúde das pessoas. Isso acontece porque o RAC utiliza um sistema de filtragem física de modo a reduzir a quantidade de contaminantes da água.
Outra característica que vale salientar é a participação das mulheres em todo o processo, desde a caracterização, passando pelo planejamento das áreas, implantação dos SAFs e construção e manutenção dos Sistemas de RAC. Foi dado prioridade ao trabalho com as mulheres, considerando que são elas, junto com os jovens, que se responsabilizam pelo manejo da água e da criação dos pequenos animais, destacando aí a criação de galinhas, como também de outros animais. As mulheres representam 70% das pessoas envolvidas de forma direta, com participação nas diversas atividades.
Pesquisa – Para compreender melhor o funcionamento do sistema e comprovar seu sucesso, está sendo realizado um estudo científico em parceria com a Embrapa Semiárido e a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) através do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Práticas Agroeocológicas no Semiárido (NEPPAS). Esse estudo envolve 10 famílias, que tiveram suas áreas divididas em duas partes, sendo uma irrigada pela água filtrada do RAC e outra em sistema de sequeiro (sem irrigação). Nas duas situações estão sendo feitas análises de solo e água e medições do desenvolvimento de algumas espécies de frutíferas e forrageiras, entre elas a palma que foi uma das principais culturas utilizada nas áreas.
Os primeiros resultados trazem informações bastante animadoras, apontando os pontos positivos e quais os ajustes necessários para dar mais qualidade na execução dessa prática. Entre esses resultados está a diferença na produção de palma, por exemplo, que no Sertão do Pajeú teve uma mortalidade de 69% nas áreas sem irrigação e apenas 17% nas áreas irrigadas, ou seja, a irrigação com água de reúso garantiu mais de 80% de sobrevivência de uma espécie estratégica para a alimentação dos animais nos períodos de estiagem.
As famílias agricultoras participantes desta experiência fazem uma avaliação muito positiva dos resultados. Aparecida, do Grupo de Mulheres da Gameleira, município de Itapetim, apoiada pelo projeto, relata: “o povo veio perguntar aqui em casa: e isso tem futuro? Aí eu falei, para mim começou ontem e já tô vendo muito futuro, que só em aproveitar esta água que antes se perdia já é muito futuro, antes perdia toda a água e hoje não perco nada, uso a do banho, das pias do banheiro e da cozinha e agora é tudo para as palmas e para as fruteiras”.
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