FOME E AGROECOLOGIA: Crise Global e Soluções Locais

João Lucas França

Radialista e comunicador do Centro Sabiá.

O Dia Mundial da Alimentação, 16 de outubro, é uma data criada pela ONU – Organização das Nações Unidas – que serve não só para falar da importância da comida saudável,  mas também sobre as pessoas essenciais que produzem comida saudável, de verdade, e respeitando a natureza. O mês de Outubro é totalmente dedicado em trazer à tona a discussão de uma alimentação saudável,  nutritiva, sem agrotóxicos, e sem veneno.  Uma conversa difícil – sobretudo quando o mundo enfrenta uma crise alimentar colossal:

Dados do relatório Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2022,  lançado pela ONU, mostram que o número de afetados pela fome mundial subiu em 2021  para 828 milhões de pessoas.  No Brasil, a rede PENSSAN (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e SAN),  mostra que já somos mais de 33 milhões convivendo com a fome.  É necessário refletir sobre a crise global e pensar nas soluções locais para afastar novamente a fome de nosso país! E tudo isso de forma Agroecológica.

Para conversar conosco sobre o assunto, convidamos a cientista e historiadora Adriana Salay! Adriana trabalha com alimentação e é professora universitária. É doutoranda em História Social pela USP, com estágio na Universidade da Califórnia, onde estudou hábitos alimentares e a fome no Brasil. Criou o projeto Quebrada Alimentada junto com o restaurante Mocotó, para promover assistência alimentar na pandemia.

Arquivo Pessoal

1) Adriana Salay, muito obrigado por aceitar nosso convite! Você pode se apresentar melhor para quem está nos ouvindo,  falar um pouco melhor sobre você?  

Olá pessoal, tudo bem? Eu que agradeço o convite! É um enorme prazer estar aqui. Eu sou Adriana Salay, sou historiadora de formação e atualmente pesquiso a fome no Brasil… Sou professora e, na pandemia, a gente criou aqui no extremo da Zona Norte de São Paulo, onde eu moro, um projeto que se chama Quebrada Alimentada, para assistência alimentar emergencial nessa crise de fome que a gente vive hoje.

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2) Adriana,  não dá para falar de fome sem antes entender o que significa;  por isso pergunto:   o que define a fome,  e o que difere fome da insegurança alimentar? 

Essa é uma excelente pergunta e é um desafio definir a fome, porque existem várias formas de entender esse fenômeno. Inclusive há uma disputa, em alguns casos até uma negação, de que exista fome no Brasil. Ao longo da história do Brasil, a gente já definiu fome de diversas formas, mas hoje a gente usa a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, que chama EBIA, e é a partir da escala de Inseguranças Alimentares – que tem 3 níveis (leve, moderada e grave) que a gente define fome. 

Para a gente, hoje fome é o nível mais grave que significa ficar um dia inteiro sem comer porque não teve acesso ao alimento. Já a Insegurança Alimentar leve e moderada, começa com aquela insegurança se você vai conseguir comprar comida. E depois aquela coisa do final do mês deu uma apertada… Você diminuiu o número de frutas, de legumes, de variedades na sua mesa… Troca a marca que você mais gosta, porque a marca que você mais gosta não consegue comprar… E depois você vai diminuindo a quantidade também. Então primeiro você perde a variedade, e depois você perde a quantidade.

Essa escala de Insegurança Alimentar é interessante porque ela mostra como um processo; não é que um dia a mesa tava farta e depois, no outro dia, acabaram totalmente os alimentos. É um processo que faz com que a família vá entrando numa situação de fome. Mas também, ao mesmo tempo, acho que às vezes a insegurança alimentar – essa palavra faz com que a gente não dê o peso suficiente que tem nesse processo. Porque não há nada de leve em você ter que diminuir a variedade de alimentos, em ter que diminuir a quantidade de alimentos… Todas as formas de insegurança alimentar são pesadas, e às vezes elas não comunicam para uma pessoa que não trabalha com o tema, por exemplo. A gente fala “insegurança alimentar”, e tem uma parte da população que não se apropria disso. Mas quando a gente fala “fome”, a pessoa se apropria. E na minha opinião, uma família que já tá pulando uma refeição, por exemplo, já está numa situação de fome. Então a gente precisa pensar esse termo como algo mais estendido do que apenas ficar um dia inteiro sem comer.

3) Adriana,  segundo o Relatório do Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2022,  lançado pela ONU – Organização das Nações Unidas,  no mundo todo a fome subiu.  Somos mais de 828 milhões de pessoas com fome.  Por que isso acontece?   Por que o mundo inteiro está passando fome?  

É uma imensa crise de fome. Uma resposta a gente já tem, que não é falta de alimento. A gente sabe que a gente produz alimento para alimentar todo mundo, mas a gente construiu um modelo de sociedade em que uma parcela da população tem acesso suficiente e de sobra aos alimentos – e até desperdiça alimentos – enquanto uma outra parcela muito grande, e cada vez maior, não consegue esse alimento, e tá em situação de fome. Hoje num mundo globalizado e monetarizado, o fator essencial de acesso a alimento é renda. Então países e pessoas que têm maior capacidade de comprar alimento, maior renda, vão ter mais acesso a alimento. E o alimento hoje é considerado uma mercadoria. As pessoas produzem num sistema em que precisam gerar lucro e precisam vender esse alimento, enquanto mercadoria.

Isso não é um problema individual, de um produtor; é um problema sistêmico de como a sociedade se organizou. Se ela é uma mercadoria, então só vai poder acessar o alimento, quem consegue comprar essa mercadoria. Por isso a gente tem uma imensa parcela da população que não consegue, porque não tem acesso a renda, vive na pobreza e extrema pobreza, e por isso o mundo continua a ter milhões de famintos.

4) Já aqui no brasil,  dados da Rede PENSSAN (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar),  nos mostram que já somos mais de 33 milhões convivendo com a fome aqui no país.   Como a fome – um problema global – atinge um país como o Brasil,  que historicamente sofre com desigualdades sociais e econômicas?  

Hoje no país a gente vive uma crise de fome. Quando a gente fala esse número – 33 milhões – a gente só tá considerando o último estágio de insegurança alimentar, que é ficar um dia inteiro sem comer. E se a gente considerar os outros estágios, a gente está falando de mais da metade da população com dificuldade de colocar comida na mesa. 

Existe um fenômeno global de aumento da fome. Um pouquinho antes da pandemia a gente já tava com dados alarmantes, e na pandemia teve uma intensificação da fome por tudo isso que a gente falou, mas existem também as especificidades do Brasil; o Brasil era um modelo para o mundo de como diminuir os índices da fome. Pensando que a fome é um problema de nosso sistema de funcionamento, é só mudando o sistema que ela vai ser definitivamente erradicada. Mas as políticas públicas têm um papel fundamental – comprovadamente – na diminuição dos índices de fome, como a gente já viu em nossa história. 

Então esse acirramento da fome no Brasil, de forma tão intensa como a gente vê hoje, também está vinculado com uma orientação do governo, do executivo, legislativo… Enfim, das esferas governamentais, de diminuição de políticas públicas de combate à fome. A gente pode ver, por exemplo, programas como programas de cisternas, que tiveram papel fundamental na população do Semiárido, o PAA, Política de Aquisição de Alimentos, que prevê a compra da Agricultura Familiar, e com isso gera renda e melhora as condições de trabalho e vida para a população do agricultor, e políticas inclusive de alimentação escolar, que tiveram seu aumento vetado.

Toda essa forma de administrar e governar a fome tem um impacto direto no corpo e na vida das pessoas, com os aumentos dos índices da fome que a gente vê hoje em dia, e que sabemos muito bem que não é falta de alimentos.

5) Segundo dados da FAO,  Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentos,  o Brasil é um dos maiores produtores de alimentos no mundo.  E mesmo assim, é um país com altas taxas de fome,  com 125,2 milhões de pessoas em insegurança alimentar.   Por que,  apesar de produzir tanto,  o brasil passa fome?    Afinal, produzir mais significa alimentar mais a sua população? 

Há 50 anos, 70 anos, a gente pensava que se a gente produzisse mais, iríamos alimentar mais pessoas. Claro que a gente precisa de um mínimo de alimentos sendo produzidos, né? Para alimentar todo mundo. Mas como eu tinha falado anteriormente, nosso modelo de produção hoje não é focado em alimentar: Ele é focado em produzir mercadorias. A gente sabe que o Brasil produz muita coisa, mas boa parte dessa produção vai para alimentar animais e não para alimentar pessoas diretamente. Alimenta pessoas indiretamente.

Mas a gente também tem que pensar no modelo de produção em que existe essa produção de alimentos, que é insustentável em termos ambientais e em termos de relação também, tanto de trabalho, quanto neste sistema que gera apenas mercadoria. E isso justifica o fato da gente ser um país que produz muita coisa, mas ao mesmo tempo, um país que tem muitas pessoas passando fome. 

Esses alimentos commodities que são produzidos, vão para os portos e são exportados. Eles não têm como função primeira alimentar as pessoas.

6) Com todos estes dados que discutimos aqui  fica claro que o sistema agroalimentar global,  baseado na geração de lucros,  e sem preocupação com a saúde mundial  está nos levando à crise, fome e morte.  Pensando nisso,  e em contraponto ao agronegócio global,  eu pergunto:   seria a agroecologia a porta de saída para essa crise mundial?

Eu acredito que sim, a Agroecologia seja a resposta para esse sistema que a gente implantou no mundo, e que a gente tá vendo que é insustentável. Pelas consequências ambientais e sociais. A nossa casa comum está sendo destruída, e o nosso povo continua passando fome. Quais são as alternativas a isso? A agroecologia implantada num sistema de agricultura familiar. Um processo que respeita a terra e respeita as pessoas, e transforma as relações de produção dos bens necessários para manutenção do mundo em algo sustentável para todas as partes envolvidas. Não somos só nós que habitamos este mundo, né? Esse mundo habita em nós também, e nós não existimos sem ele.

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7) A agroecologia já provou no passado,  e continua nos mostrando,  que é possível preservar a natureza,  garantir soberania alimentar e saúde.   Como a agroecologia pode alimentar o Brasil? 

A gente enquanto sociedade tem um modelo de desenvolvimento muito pautado em oposição à natureza. Há uma ideia muito cristalizada principalmente de base Européia Ocidental, de que para a gente se sentir seguro, precisamos produzir um modelo que seja de dominação e oposição à natureza. Mas muitos povos que vivem ainda hoje – apesar de terem sido exterminados na maior parte – que viveram há milhares de anos, vivem em harmonia com a natureza, e provam que existem modelos de produção que são sustentáveis e que podem alimentar a população.

Hoje temos infraestrutura necessária ou que a gente sabe que tem que ser feita para formar circuitos curtos de produção de uma agricultura descentralizada e agroecológica, que pode transformar esse modelo de produção num modelo sustentável para manutenção do mundo e da nossa existência, consequentemente.

8) Em um sistema agroalimentar mundial baseado na agroecologia,  podemos ver soluções locais  para crises mundiais.  Adriana,  como funciona uma economia baseada na agroecologia?   O que realmente muda – tanto para quem produz  quanto para quem consome?  

Como a gente estava falando, existe um modelo que hoje a sociedade segue, de tentativa de dominação e oposição à natureza. E ao mesmo tempo, de homogeneização dos consumos de alimentos. Acho que isso tem haver com a pergunta aqui. O que a sociedade – no geral, e simplificando – mostra uma tendência de consumo, é consumir cada vez mais as mesmas coisas no mundo inteiro. Hoje a nossa alimentação se baseia nos mesmos ingredientes, que são pouquíssimos. E isso é um risco para a natureza, porque a gente impõe um tipo de produção, que às vezes não é o melhor para aquela terra, e para a nossa saúde também. Além de deixar na mão de poucos alimentos, a alimentação de muitas pessoas.

Quando a gente fala de produção local, estamos falando também de respeitar aquele lugar, aquele bioma, aquilo que deve ser plantado. Então, para mim, o modelo de produção que deve basear a alimentação no mundo, é o favorecimento da produção local a partir daquilo que o bioma é capaz de dar. Se a gente respeita o lugar que a gente tá e valoriza este lugar, a gente consegue entrar em harmonia com o sistema e produzir consequentemente mais alimentos. Produzindo mais alimentos, a gente consegue, a partir da tecnologia que a gente tem hoje, de alta circulação pelo mundo, caso seja necessário, levar alimentos para outros locais também. E assim, criar modelos muito mais sustentáveis do que a gente tem hoje. 

9) Adriana, sabemos que apesar de todas as vantagens da agroecologia,  ela sozinha não resolve crises globais.  Adriana,  a política influencia?   Qual a importância de termos cada vez mais deputados e deputadas,  governadores,  prefeitas,   e tantos cargos de importância em nosso país,  que de fato se preocupem com a alimentação saudável e nutritiva?   _mete o bico!

A gente tá vendo quais são as consequências das decisões políticas para a nossa alimentação. Se o problema é sistêmico – como venho falando aqui – ao mesmo tempo a política tem uma interferência enorme nesse sistema. Podendo reduzir os índices de fome, como já vimos no Brasil, ou aumentar os índices, como vemos hoje. Ao mesmo tempo, o que a gente vê hoje, tá na contramão do que viemos falando. Então temos um alto índice de aprovação de agrotóxicos que não são mais utilizados em várias partes do mundo, um aumento do índice de desmatamento… é uma contramão daquilo que a gente vem discutindo, daquilo que o mundo vêm falando, e que para a onde a gente sabe que tem que ir.

Por isso que as decisões políticas e as escolhas dos nossos dos nossos representantes também são fundamentais para orientação e para aquilo que a gente quer para o país.

10) É isso!  Adriana Salay,  muito obrigado pela sua participação.  Infelizmente, nosso tempo de entrevista está acabando. Tem alguma mensagem que você gostaria de deixar,  uma consideração final?  

Queria agradecer o convite! Admiro demais o trabalho de vocês, eu e o Rodrigo, meu companheiro, que me apresentou. É um prazer enorme estar aqui! E acredito que a gente tenha que se unir, pessoas que estão pensando parecido e que queiram um mundo onde caiba a nossa existência, no sentido amplo, né? Não só da humanidade, mas também dos outros seres vivos que habitam esta terra e da própria terra. Por isso, estamos juntos! Obrigada, pessoal.

Que bom ter você por aqui…

Nós, do Centro Sabiá, desde 1993 promovemos a agricultura familiar nos princípios da agroecologia. Nossa missão é "plantar mais vida para um mundo melhor, desenvolvendo a agricultura familiar agroecológica e a cidadania". Seu apoio através de uma doação permite a continuidade do programa Comida de Verdade Transforma e outras ações solidárias e inovadoras junto ao trabalho com crianças, jovens, mulheres e homens na agricultura familiar.

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