Feminismo indígena: estudo e ancestralidade

Elisa Urbano Ramos Pankararu , ativista indígena da etnia Pankararu e antropóloga que há mais de dez anos participa de movimentos do campesinato, indígena e das mulheres. Nesta conversa, com a jornalista Rosa Sampaio do Centro Sabiá, Elisa falou da luta dos povos e sobre a desigualdade de gênero e a trajetória em defesa da existência de um feminismo indígena.

Mulheres Pankararu/Acervo Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme)

Dois Dedos de Prosa(DDP)- Para começar, explica pra gente o que é feminismo indígena?
Elisa Pankararu – Sou umas das pioneiras no Brasil a falar sobre feminismo indígena. Enquanto mulher indígena, eu vou buscar inspiração a partir do meu povo, do território do qual pertenço. Quando estava pesquisando para a minha dissertação, de fato não havia nenhuma bibliografia, nenhum material escrito no Brasil que tratasse do assunto. Um amigo professor me apresentou material sobre feminismo comunitário,da Julieta Paredes, indigena do povo Aimará, da Bolívia. Na qualidade de mulher indígena, me sinto à vontade para falar do assunto, eu considero a palavra feminismo hoje, uma palavra de domínio público, sendo assim, vou buscar elementos para a minha composição, que é do meu lugar de fala, que é da convivência, desde a minha infância, com mulheres especiais do meu povo, que considero de tradição matriarcal, porque na história tem importantes mulheres, que mesmo que tenham passado pela vida terrena há 100, 200 anos atrás, elas continuam fazendo parte da história atual Pankararu, continuam orientando e sendo exemplos. Eu convivi com mulheres sábias, detentoras, zeladoras e guardiãs dos saberes tradicionais. Parteiras, rezadeiras, curandeiras, mezinheiras, conselheiras, lideranças, caciques, profissionais de saúde e educação. Mas também convivi e convivo com mulheres que vivem em contexto de subalternidade. A minha conceituação vem por meio da ação, onde há a participação dessas mulheres, desde os espaços e rituais sagrados, no chão das aldeias, nas retomadas, até nos movimentos.

Tenho muita tranquilidade de falar do feminismo indigena, porque eu busco na minha essência , na minha ancestralidade, compreendendo o meu contexto, o meu percurso, de quem vem antes de mim, do que vivo e vivi.

Atualmente a falta de estudo sobre o tema ainda é uma realidade?
Eu vejo que hoje tem ampliado a discussão sobre as mulheres indígenas, bem como a saída das mulheres da invisibilidade, de 2017 prá cá. Também com o aumento das mulheres na academia, nos mestrados e doutorados, essa presença tem dado uma visibilidade maior ao tema, mas também essas mulheres vêm anunciar e denunciar as violações dos seus direitos, dos seus territórios.

Como o feminismo indígena é entendido pelas demais mulheres Pankararu?
É mais comum no Brasil falar mais a palavra machismo, do que sobre o feminismo. Então falar feminismo no Brasil, em todos os contextos e em todas as sociedades, é difícil, pois o termo é visto de forma preconceituosa. E nas comunidades indígenas esse termo vai ser pouco usado, por se tratar de uma palavra muito acadêmica ou dos movimentos feministas. A gente sabe que as mulheres que se dizem feministas são discriminadas, são vistas de forma pejorativa. No meio indígena, destaco a subjetividade como essas mulheres vão conduzindo seu povo, a sua autoridade, junto a homens e mulheres do seu território. Então é a ação que é mais importante que a palavra. Considerando esse feminismo enquadrado, o indigena vai trazer isso de forma ancestral, refletindo as violações da colonização, dos nossos corpos e dos territórios sagrados presentes até hoje.

Somos muitas e diversas , quais as particularidades e desafios das mulheres indígenas hoje?
Há dois tipos de violência. Primeiro, a violência do Estado Brasileiro e da sociedade brasileira, que historicamente nega nossa presença. Desde a chegada do invasor até os dias de hoje. A história do Brasil é constrúida em cima de sangue negro, sangue indigena, de ciganos, dos povos camponeses e em cima do sangue das mulheres. É preciso fazer essa afirmação, não se combate um problema sem falar do assunto, sem trazer para a pauta do dia a raiz da questão. O grande desafio é lutar pelos direitos humanos, contra uma sociedade racista, que tem na sua cultura e no seu modo de pensar, esse racismo enraizado e suas consequências. Em segundo lugar, pensar nas mazelas do machismo e da violência doméstica. Eu acredito que isso tem que ser falado em todos os espaços públicos, se não, nossas meninas e mulheres continuarão a ser violentadas. As mulheres indígenas, negras, periféricas, LGBTQIA+ sofrerão mais, pois são vítimas de uma carga de preconceito maior. Esse debate precisa ir para os meios de comunicação, para os espaços de saúde, de educação. E também na luta pela agroecologia. A agroecologia que tem esse lugar de saberes populares, atrelados a saberes acadêmicos, um espaço de produção de conhecimento de várias vertentes, deve trazer essa pauta. É isso, o desafio tem origem na luta pelo território, pela terra, que é a mãe de todas as lutas…

Mulheres Pankararu/Acervo Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme)

Quais as violências que as mulheres indígenas sofrem ainda hoje?
Nós mulheres, já estamos marcadas para morrer no ventre de nossas mães. Não estou exagerando quando afirmo isso. O feminicídio é apenas uma ação final, apenas “puxa o gatilho” de uma construção que vem durante toda a vida, de um histórico de violência. Toda essa construção passa pelo racismo, que tem cara, nome, ele é homem, branco, hétero, cristão, patriarcal e capitalista. O machismo e a violência contra a mulher são mazelas da colonização, o entroncamento patriarcal, que não explora só nossas mulheres e meninas, explora também os nossos homens e meninos (indígenas), deixando nos nossos territórios rastro de violência.

Em meio há tanto descaso, falta de políticas públicas e até genocídio contra os porvos indígenas nos ultimos anos no Brasil, como fica a situação das mulheres?
Por várias vezes, eu vou pontuar a questão do racismo, seja em terra Yanomami, Pataxós, Guaranis, Caiuás… Esse pensamento de que o outro é subalterno, que um grupo de pessoas é inferior, e portanto suas vidas não importam, tem um começo. O genocídio está em percurso há 523 anos. E isso se estendeu para todo o território do Brasil, e chegou, infelizmente, onde não devia chegar, que é no espaço onde se discutem políticas públicas. Então, nos últimos quatro anos, praticamente houve uma autorização ao genocídio. Como uma terra indígena tem 20 mil garimpeiros, 20 mil exploradores? Então, tem o viés do racismo, atrelado ao capitalismo.Como se estupra e mata uma menina de 12 anos? E não estou falando que foi um homem, foram muitos. Não são casos isolados, mas não vêm à tona. Por isso que eu falo sobre “trazer a pauta”.

O que esperar do novo Governo Lula e do novo Ministério dos Povos Indígenas que tem à frente, no comando, a Sônia Guajajara ? Dá pra esperançar ?
Sim, nunca as mãos estiveram tão seguras como agora. Eu vi a posse ancestral, né? Esse “segurar as mãos” nesse momento, trouxe esperança. Esse esperançar nunca foi tão forte, não apenas para os povos indígenas, mas para todo o povo brasileiro, para as pessoas que foram deixadas para trás nestes quatro últimos anos. O “ninguém solta a mão de ninguém’’ tem sido mais significativo agora, em que os ministérios, dos Povos Indígenas, Igualdade Racial, Mulheres, e Direitos Humanos, junto com Educação, Saúde, vão trazer essa participação popular. O povo brasileiro está voltando ao seu lugar, nossa voz está voltando através dos nossos. Podemos dizer que estamos representados. E a Sônia Guajajara vem com a experiência junto aos movimento indígena, a vivência nos acampamentos Terra Livre, nas assembleias, na valorização da visibilidade da mulher indígena. É uma construção, um lançar sementes, não apenas para os indígenas, mas para o Brasil e para o mundo. Falamos da cura da terra não apenas para nós, mas para a humanidade.

Que bom ter você por aqui…

Nós, do Centro Sabiá, desde 1993 promovemos a agricultura familiar nos princípios da agroecologia. Nossa missão é "plantar mais vida para um mundo melhor, desenvolvendo a agricultura familiar agroecológica e a cidadania". Seu apoio através de uma doação permite a continuidade do programa Comida de Verdade Transforma e outras ações solidárias e inovadoras junto ao trabalho com crianças, jovens, mulheres e homens na agricultura familiar.

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