Quilombo como organização, luta e resistência das mulheres

Damos continuidade à série Mulheres Negras: do centro à periferia, construída em parceria entre o Centro Sabiá e o Terral Coletivo de Comunicação Popular, como forma de marcar o mês da Consciência Negra. Todos os textos que integram a série são escritos por jornalistas negras do Terral e tem como entrevistadas mulheres negras. Nesta segunda matéria, tratamos de mulheres e quilombos, na perspectiva histórica, mas também na contemporaneidade. 


Coco de Mãe Biu, no Terreiro da Nação Xambá | Foto: Beto Figueirôa/Arquivo Bongar

por Catarina de Angola e Mariana Reis – comunicadoras do Terral Coletivo de Comunicação Popular

“Nas formas de organização de resistências, as mulheres tiveram participação efetiva nos quilombos, mas por conta dos processos mais globais que vivemos de invisibilidade das mulheres, até quando começamos a contar a história, o patriarcado só honra a existência e história dos homens. Mas o que eu vejo é que é impossível afirmar que as mulheres ficaram em uma posição secundária nesse processo, porque elas também estavam submetidas ao sistema escravocrata e estavam na resistência”, explica Cecilia Godoi, integrante do coletivo Cabelaço e mestra em Educação, Culturas e Identidades pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).

Falar de quilombos é falar de resistência e por isso é importante marcar o papel das mulheres nesse processo que é histórico, mas também contemporâneo. Historicamente, esses territórios não eram espaços que tinham apenas referências masculinas em sua organização política, econômica e social. As mulheres sempre foram muito importantes para sua estruturação, desenvolvimento e luta. “Os quilombos eram uma forma de organização que já existiam em África, em que se fazia resistência ao sistema colonial que estava se alastrando por lá e que estava transmigrando as pessoas. Essa é a primeira base para a gente poder pensar qual a potência do quilombo”, explica a cientista social, cuja própria origem familiar está ligada às comunidades de Feijão e Queimadas, em Mirandiba (PE).

Logo, quilombos não eram esconderijos de escravos. “É essa percepção que se construiu de que os quilombos eram como um campo de refugiados, com pessoas desnorteadas e perdidas que foram para algum lugar e ficaram no meio da mata sem saber o que fazer e para onde ir”, pontua Cecilia, que também resgata esses espaços como uma das formas de organização do povo negro no Brasil. “Assim como os portugueses chegaram aqui e construíram um sistema de sociedade colonial com base na colonização e escravidão, quando os africanos chegam aqui, começam naturalmente com o processo de se estabelecer socialmente e a instaurar um tipo de organização e sociedade a partir da ideia que se tinham de África”, afirma.


Cecília Godoi, cientista social e integrante do Coletivo Cabelaço | Foto: Arquivo pessoal

História Negada 

Essa forma de organização, luta e resistência foi construída por mulheres e homens. No entanto, também tivemos parte dessa história negada. Não são suficientes os registros que temos hoje sobre os quilombos para entender a complexidade de seu processo de organização, assim como as especificidades dos diversos territórios espalhados por todo o País. Além de Zumbi dos Palmares, em cuja homenagem se comemora, no dia 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra, temos lideranças femininas dessa resistência, como Aqualtune e Dandara, ambas também de Palmares. A primeira foi princesa do Congo no século XIII, guerreira africana que quando escravizada lutou contra o regime. A segunda é comumente referida como companheira de Zumbi, mas também exerceu papel de protagonismo na luta quilombola. 

No Centro-Oeste, a referência é Tereza de Benguela, que liderou um quilombo no Mato Grosso. Além delas, muitas outras mulheres exerceram papéis importantes para a força dos quilombos no País, que eram espaços dinâmicos nos quais as mulheres exerciam diversas atividades. “Essa ideia do quilombo como área isolada, inclusive das cidades, das colônias na época, é uma ideia ilusória. As comunidades produziam e produzem artesanato local. Existia um cultivo e uma agricultura que garantia a subsistência da comunidade e certamente mantinha relações com os centros econômicos que também dependiam do que produziam os quilombos. Eram organizações com tanta força que passaram a estabelecer relações comerciais com a cidade”, explica Cecilia.

Luta contemporânea e também urbana

A identificação dos quilombos enquanto comunidade de descendentes do povo negro persiste até hoje, sendo, inclusive, reconhecidos como territórios com garantias de direitos, com acesso a políticas públicas de cidadania. Segundo dados de maio de 2016 da Fundação Cultural Palmares, hoje, são formalizadas mais de 2.600 comunidades quilombolas em todo o Brasil. Somente em Pernambuco, ainda de acordo com a mesma fonte, são 38 comunidades reconhecidas e 11 em certificação, passando por processo de análise técnica. No entanto, muitas outras comunidades existem e ainda não estão nesse processo de reconhecimento. Tal reconhecimento, para além do espaço geográfico, tem a ver com tradições culturais, religiosas e de vida comunitária que resistem ao longo do tempo. E o protagonismo das mulheres nessa luta não se restringe a um passado remoto, colonial.

É o caso do Quilombo do Portão de Gelo, na periferia de Olinda. Contrariando o imaginário popular de quilombo apenas como terras rurais, a comunidade recebeu o título de primeiro quilombo urbano do Estado, em 2006, e foi o terceiro reconhecido no Brasil. Sua história remonta à sobrevivência do povo de santo da nação Xambá, cuja perseguição devido à intolerância religiosa levou a uma trajetória de fuga desde Alagoas, na década de 1920 – passando por violência e fechamento de terreiros, durante a ditadura do Estado Novo – até fixar-se na localidade, sob liderança de Severina Paraíso, a Mãe Biu, nos anos 1950. 

Ali foi erguido o Terreiro de Santa Bárbara, santa católica que, no sincretismo religioso, relaciona-se ao orixá feminino Iansã, arquétipo de guerreira, no candomblé. No entorno do terreiro – único desta vertente religiosa que sobreviveu no Brasil – construiu-se a comunidade, na rua que hoje recebe o nome da fundadora da casa, Severina Paraíso. Nesse arredor, novas famílias são constituídas, há um memorial e um espaço cultural e celebra-se, há mais de 50 anos, o tradicional coco no dia 29 de junho, aniversário da matriarca, falecida em 1993. Nos dias atuais, pode-se dizer que é um espaço em que a liderança das mulheres é bastante forte, com a incidência das mulheres do terreiro na missão de perpetuar a tradição religiosa para dentro e fora da comunidade: preservação de uma memória viva e ressignificada no presente – de quem sobreviveu para contar. 

 

Terral Coletivo de Comunicação popular
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