Entrevista: “O feminicídio é um crime que está relacionado ao ódio”
Foto: Acervo Pessoal
Conversamos com Graciete Santos, coordenadora geral da Casa da Mulher do Nordeste, sobre a Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio, o que tem sido feito para combater a violência contra a mulher e quais são os resultados disso
Por Sara Brito (Centro Sabiá)
O Canto do Sabiá: Por que o uso do termo feminicídio é importante?
Graciete Santos: É bem importante o uso do termo feminicídio porque na verdade ele qualifica. Hoje temos uma lei, que está em vigor desde 2015, que qualifica esse crime, a violência que tira a vida das mulheres ou que, na verdade, tem uma ação de violência, de menosprezo ou de opressão, a violência doméstica familiar, por ser mulher. Então está relacionada a uma questão de gênero, de poder. Esse termo vai qualificar o homicídio, ele torna o homicídio de mulheres um crime hediondo, ou seja, de uma maior gravidade. Eu acho que ele é importante porque dá visibilidade à questão, aos registros oficiais, a partir do momento que é uma lei e que se cria essa condição, e ao mesmo tempo ele problematiza mais isso, institucionaliza mais isso nesse âmbito. Outra questão que eu acho que é importante destacar é que na verdade ele é um crime que está relacionado ao ódio, não é um evento isolado. Na verdade existe toda uma questão que está enraizada no patriarcado, na violência contra as mulheres pela condição da ameaça que as mulheres trazem a essa concepção de que os homens têm privilégios e têm um poder maior sobre as mulheres.
O Canto do Sabiá: Os reconhecimentos jurídicos, como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio tem algum resultado?
Graciete Santos: Eu acho que tanto a Lei Maria da Penha, quanto o feminicídio trazem um resultado importante para a sociedade, que é desnaturalizar o problema da violência. Não é normal, não é natural que as mulheres sofram violência só porque são mulheres. Essa questão abarca uma questão jurídica, de direitos humanos e de saúde pública também. Porque acaba que as mulheres que chegam machucadas, as mulheres que chegam com lesão, as mulheres que sofrem opressão. A questão da lei amplia o sentido da violência. Não é mais só a violência física, é a violência moral, é a violência patrimonial, é a violência sexual. Ela cria uma compreensão maior no âmbito da violência e vai desnaturalizando essas questões. Então a mulher como objeto do homem pelo seu corpo é um tipo de violência, a mulher que não tem condição de escolher se quer ter filhos ou não, o estupro, a violência moral que desqualifica a mulher publicamente ou dentro das relações familiares. Eu acho que um resultado importante é isso, a desnaturalização desse problema, ampliar os sentidos da violência e trazer a questão das relações de poder, tanto no âmbito das relações familiares como no estado, nas organizações.
O Canto do Sabiá: Quais são as consequências que esse reconhecimento da violência traz?
Graciete Santos: Acho que em termos de avanço temos alguns mecanismos, a própria proposta de ter assistência, a lei tem essa previsão de acolher as mulheres e dar assistência às mulheres que são vítimas de violência, mas na verdade não temos resultados em números. A gente ainda tem um número grande de violência no Brasil, e o estado de Pernambuco sobretudo é um dos mais violentos. Então acho que essa é uma questão que a gente avançou pouco no impacto disso. E eu acho que isso está relacionado também ao momento que vivemos. Por um lado a gente teve um avanço na conscientização das mulheres, um avanço das mulheres que entram no mercado de trabalho, então tem uma autonomia econômica maior, um avanço na auto-organização das mulheres, um movimento feminista mais fortalecido, uma juventude também que entra na discussão do feminismo, o feminismo nas redes sociais, então a gente tem uma popularização de temas dessas questões. Mas ao mesmo tempo, em consequência disso, a gente tem um avanço enorme do conservadorismo, das bancadas religiosas, do controle sobre o corpo das mulheres, do assédio, de casos de estupro, então quanto mais as mulheres se libertam, ou se afirmam, elas são agredidas por esse tipo de conquista. Então temos esses dois polos aí. E tem uma questão que vivemos um momento de acirramento das desigualdades sociais, econômicas e de gênero. Tem uma relação aí que a gente vai articular com a dimensão de gênero, com a dimensão de classe e com a dimensão de raça também. Então vivemos tempos mais desiguais, de mais desemprego, de mais violência, de mais acirramento dos pensamentos, de polarização. Então consequentemente as mulheres são as principais vítimas disso.
O Canto do Sabiá: A violência contra a mulher é uma realidade que afeta em maior número as mulheres negras. Por exemplo, enquanto o número de homicídios de mulheres brancas caiu nos últimos anos, o de mulheres negras aumentou, segundo dados do Mapa da Violência. A que você acha que se deve isso?
Graciete Santos: Embora tenhamos poucas análises com o corte racial, mas já temos estudos, o Mapa da Violência por exemplo, que mostram que as mulheres negras sofrem um maior tipo de violência. E eu acho que isso está relacionado a essa tripla dimensão que eu falei anteriormente, de raça, gênero e classe. As mulheres negras são as que estão mais vulneráveis. Em ocupações de trabalho mais vulneráveis, mais expostas, que tem uma renda menor, um nível de escolaridade menor, que moram em periferias… A outra questão eu acho que é uma questão simbólica da mulher negra, da mulher como instrumento, não só de mercado, de vender essa mulher de corpo moreno, ou de gostosa, ou que tá no carnaval, que é a imagem colada a ela, mas também tem essa coisa da mulher que é a que vai servir ao homem. Então a gente pode fazer uma análise também do quanto, nesse sistema, a sexualidade da mulher negra está a serviço dessa relação de opressão.
O Canto do Sabiá: A impressão é de que também no meio rural os casos de violência contra a mulher também são mais numerosos. No trabalho da Casa da Mulher do Nordeste vocês observam isso?
Graciete Santos: Uma das afirmativas nesse movimento de controle social e de reivindicação é a gente fortalecer esses organismos locias de política para as mulheres nesses municípios. O que temos observado no Sertão do Pajeú é o quanto essas questões têm uma dimensão maior para o mundo rural. Porque faltam equipamentos sociais, faltam políticas ou organismos que cuidem disso, que as mulheres possam procurar, possam acessar. E também o próprio isolamento, as distâncias das comunidades para outras, elas não têm a quem recorrer. Então o que observamos acompanhando as mulheres é que de fato existe um número crescente. É uma coisa que existe entre as mulheres agricultoras, nas famílias, mas que muitas vezes é difícil de se revelar, é difícil de se colocar, porque eu estou falando da pessoa que é amiga do meu vizinho, então tem toda uma relação de vínculos. Como é que eu vou falar isso? Essa mulher está só, ela se sente só porque ela não tem ninguém com quem compartilhar. Então, nas rodas de conversa que fazemos, na Escola Feminista, nessas oficinas que a gente faz, a gente cria um ambiente favorável para que essas mulheres possam se abrir, para que elas possam trocar isso, mas a gente vê o quanto é difícil principalmente para as mulheres mais velhas, as jovens tem uma condição maior de falar sobre isso. E são diferentes formas de violência que essas mulheres vivem, mas sobretudo a violência moral e patrimonial. Mulheres que trabalham muito na agricultura familiar, que garantem a segurança alimentar, que estão lá na gestão da água, que estão lá com os seus quintais, que estão lá na comercialização mas que não tem uma valorização da família. Que sofrem opressão porque a sua renda, os seus recursos, muitas vezes ficam com os seus companheiros, porque elas não têm a chance de participar de espaços políticos, não tem o próprio direito ao lazer. Sem falar na questão da sexualidade… quando a gente vai pra esse âmbito é muito duro. Então eu acho que a gente realmente precisa dar as condições para revelar esse quadro no rural, que é, sem dúvida alguma, muito mais difícil, muito mais invisibilizado e que tem menor assistência.
Canto do Sabiá: O que os cidadãos e as cidadãs podem fazer para ajudar a mudar essa realidade de violência?
Graciete Santos: Acho que o que podemos fazer para ajudar a mudar essa realidade é cada vez mais estimular processos educativos, rodas de conversa, debates, seminários, oficinas, que possam trazer uma maior consciência das mulheres. Porque eu acredito que isso tem que estar relacionado primeiro a uma consciência, compreender essa situação, o porquê dessa violência, do aumento de violência, o porquê do número de feminicídios, de mortes de mulheres por elas serem mulheres. Então acho que informações, dados, colocar todo o processo de luta do movimento feminista, dos direitos alcançados e dessa compreensão de que existe uma relação de poder, de que existe uma cultura, um pensamento fundado no patriarcado que parte da ideia de que há uma superioridade dos homens sobre as mulheres. E que isso tem um rebatimento histórico e cultural que cruza com essas dimensões que eu já falei anteriormente, que não só a dimensão de gênero. Então acho que as práticas educativas e a formação política são importantíssimas. A outra questão eu acho que é valorizar e visibilizar esses dados e essas informações para que a gente tenha argumentos, para que a gente estimule pesquisas para que esses dados sejam acompanhados e que quem está nos movimentos feministas, nos movimentos de mulheres possam estar na pressão, principalmente nesse momento, de estar incidindo politicamente nos espaços, nos conselhos, que por mais difíceis que eles são hoje, são espaços que precisamos estar. Espaços de ativismo político nas ruas, nas mídias sociais, nos programas de rádio. Acho que a gente tem que levar essas questões para além do movimento feminista, também colocar isso em pauta para outros movimentos, como o movimento agroecológico, levar para o movimento da juventude, pro movimento rural. Essa pauta das mulheres tem que ser tratada como uma questão prioritária. A luta pelo fim da violência contra a mulher, contra o número bastante significativo de mortes, isso tem que ser uma pauta comum a todos os movimentos sociais. Acho que um outro ponto sobre isso é a denúncia. É importante que se denuncie e para isso nós precisamos desse trabalho de base. De fortalecer as mulheres, que elas conheçam outras mulheres, que elas troquem experiências com outras mulheres, que elas se fortaleçam para que elas possam denunciar. É muito importante isso, essa vigilância e esse ato da denúncia porque isso não é só um ato de direito, é necessário também para os dados, para que a gente possa visibilizar o problema e para que o infrator, o criminoso possa ser punido.
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