A luta dos povos indígenas deve ser de todo povo brasileiro
Foto: Kio Lima / Abrasco
ENTREVISTA ELISA PANKARARU – A luta dos povos indígenas deve ser de todo povo brasileiro, sobretudo nesses tempos de Coronavírus
Como os povos indígenas estão enfrentando o Coronavírus em suas comunidades? Em abril, mês de luta dos povos indígenas, o Centro Sabiá ouviu Elisa Urbano Ramos, indígena do povo Pankararu e coordenadora do Departamento de Mulheres Indígenas da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME). O povo Pankararu fica localizado no Sertão de Pernambuco, entre os municípios de Tacaratu, Petrolândia e Jatobá.
Elisa Pankararu: Do ponto de vista histórico, desde a pisada do invasor em nossas terras, de 1500 até os dias atuais, as epidemias têm sido parte da destruição dos nossos povos ao longo desses séculos. Então, nós povos indígenas, que somos de tradição da convivência coletiva, que temos uma cultura de coletividade, fica difícil conviver com essa nova e estranha realidade. Por que estranha realidade? Porque de uma hora para outra, ela passa a exigir com que a gente rompa com essa forma de organização social que nós temos. Há uma imposição de que ficamos isolados, o chamado isolamento social. Por que para nós é uma imposição, embora tenhamos que atender? Então, esse isolamento, do ponto de vista de uma convivência aonde diariamente nós estamos… visitamos parentes, visitamos as aldeias, principalmente nós que somos profissionais de educação ou profissionais de saúde ou lideranças, que temos essa convivência direta, não apenas com nossos familiares, pai, mãe, filho, irmão… mas com todo os moradores das nossas aldeias, com toda a comunidade, com toda a população. Então, essa exigência passa a ser um elemento estranho no nosso modo de vida, na nossa forma de se organizar porque ela também vem de fora. Então, ela não é algo que nasce dentro dos nossos povos, é algo que vem inclusive de fora do Brasil, mas que passa por todo um contexto onde metade da população é a favor de ter cuidado com os outros, com a vida de outras pessoas e uma outra metade, não. Então, nós estamos convivendo com um viés de contradição.
Centro Sabiá: É impossível não falar da crise que enfrentamos globalmente hoje, que é a crescente do Coronavírus no Brasil e no mundo. Como você vê o povo indígena na luta contra o crescimento do vírus no Brasil?
Elisa Pankararu: Nossos povos sempre viveram em harmonia com a natureza, em harmonia na forma de conviver. Ou seja, tinha o seu próprio jeito de se organizar, o seu próprio jeito de educar, o próprio jeito de vivenciar a sua relação espiritual, a relação com os seres visíveis e não visíveis, a sua relação de harmonia com as plantas, com os animais, com sua cosmologia. Ou seja, tinha os seus próprios sistemas de saúde, o seu próprio sistema de educação. Portanto, ao ter o seu próprio sistema de saúde também havia o seu próprio sistema de cura. Então, eu estou falando havia, mas no presente o sistema de educação e de saúde e de convivência e de organização, a sua relação com a terra ainda está presente nos povos indígenas. E aí o meu lugar de fala é o território Pankararu, no entanto, a minha convivência na qualidade de educadora com outros povos, com a organização, com o movimento indígena, a organização que discute educação, me permite conhecer outros povos em Pernambuco. E aí essa relação de contato desde a chegada do invasor, do colonizador, mexeu nessa estrutura, nessa forma de vida que esses povos tinham e continuam tendo. Então, mesmo assim os saberes ancestrais (que são os conhecimentos que nossos antepassados nos deixaram) faz com que a gente conviva com essas situações. Portanto, a luta dos povos indígenas, hoje, é uma luta pelo seu território principalmente. É o território que garante a sobrevivência, a subsistência física, cultural, intelectual, espiritual desses povos. Então, os povos indígenas têm se organizado e se preparado para enfrentar essa epidemia. O coronavírus vem mexer também com essa estrutura e fazer com que esses povos pensem essa forma de enfrentamento, não é? Essa forma de saber que esse elemento estranho a nosso sistema de saúde está posto e que nós precisamos organizar as nossas defesas. Conversar com os nossos parentes, se isolar do mundo lá fora e, mesmo assim, esse mundo lá fora não está isolado da gente. Então, os nossos parentes circulam por esse mundo lá fora, transitam da aldeia para fora da aldeia e vice-versa. No entanto, o problema da epidemia se soma a outros problemas. Se soma a garantir a alimentação, se soma aos problemas dos profissionais sejam os de carteira assinada ou ligados a uma instituição ou os autônomos, vamos chamar de autônomos. No nosso contexto, os agricultores e agricultoras, os artesãos e as artesãs dependem de uma troca no sentido de garantir a sua economia. E aí a gente vai conviver com todas essas situações que o Estado Brasileiro coloca para a sua sociedade e, lógico, para os povos indígenas que estão inseridos nessa sociedade.
Centro Sabiá: Por que a luta dos povos indígenas deve ser uma luta de todo povo brasileiro, sobretudo nesses tempos de Coronavírus? Por que devemos nos unir?
Elisa Pankararu: Somos parte integrante deste país. Então, na conjuntura atual, nós vemos que o povo brasileiro está dividido. Por que dividido? Porque de um lado as pessoas estão preocupadas umas com as outras, estão preocupadas consigo. Então, defendendo o isolamento social e praticando esse isolamento. No entanto, outra parte… infelizmente, o Brasil é o único país que incentiva as pessoas a caminharem para o contato com a doença. Mas não é qualquer pessoa que é incentivada. É a classe trabalhadora. Então, enquanto uns estão se protegendo, os mesmos que estão se protegendo sugerem, incentivam que outros saem de suas casas, expondo pessoas que uma vez contaminadas terão poucas chances de cuidados. Mas todos nós estamos expostos. De fato, o problema que milhares de pessoas estão vivendo hoje é também nosso problema. Então, o fato de estarmos cumprindo a nossa quarentena não significa que não tenhamos nenhum contato ou necessidade de ter contato com a cidade, de ir à cidade, de comprar alguns gêneros alimentícios ou resolver outras coisas. Mas uma rápida ida à cidade nos expõe à possibilidade de sermos contaminados. E uma vez que um de nós sermos contaminados, obviamente outras e outras pessoas serão. E aí, o problema para buscar a cura é bem maior, é muito maior. E então vem uma outra questão, que é a seguinte: de que forma esses atendimentos hospitalares estão sendo feitos? Para quem? Como?
Centro Sabiá: Que mensagem gostaria de deixar, para finalizar?
Elisa Pankararu: O respeito se faz necessário. O respeito às diferenças, o respeito aos modos de vida dos povos indígenas e de outras pessoas devem ser respeitados. Nós vivemos em um contexto de racismo nesse país, nesse caso o racismo, o caso dos povos indígenas, que atinge a todas as questões a nós direcionadas. Então, uma primeira questão de racismo é não respeitar os nossos territórios. Então, os nossos territórios são sagrados para nós, é deles que nós tiramos todos os nossos sustentos. Então, não é apenas o sustento físico, mas o sustento cultural, o sustento das nossas histórias, dos nossos antepassados, o sustento da nossa espiritualidade. E esse racismo faz com que a atenção à nossa saúde, as políticas públicas de saúde sejam deficientes, as políticas públicas de educação tenham as suas falhas. Então, falar de racismo nesse momento, do desrespeito às nossas especificidades, é também atrelar a uma conjuntura que é posta sobre o Coronavírus nesse País.
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