Diálogos entre gerações e territórios: a ancestralidade como instrumento para o pertencimento identitário

Foto: CJMA

Giuseppe Bandeira e Janaina Ferraz, assessora de Juventudes do Centro Sabiá

Em Pernambuco existe uma significativa diversidade de conhecimentos e práticas entre povos e comunidades tradicionais que promovem saúde, auto-atenção e soberania, e entendem suas práticas de cura e convívio com o ambiente como a base que sustenta o Bem Viver. São experiências e histórias que revelam as raízes mais profundas do Nordeste do Brasil. Em Rio Formoso, Zona da Mata Sul de Pernambuco, na Comunidade Quilombola Povoado de Demanda, a juventude organizada vem assumindo seu protagonismo e pautando o reconhecimento dos saberes ancestrais dos mais velhos e das suas relações com os seres humanos e não humanos fortalecendo seus modos de vida nos territórios sagrados.

O jovem Edvan Sousa, de 23 anos, relembra que a comunidade Povoado de Demanda foi aquilombada por um casal de negros vindos de África. “Esse casal teve seis filhos, uma mulher e cinco homens, um deles é meu bisavô. Aqui estamos todos em família, minha tia mora aqui na frente, ali é a casa do meu avô que faleceu recentemente. Muitos se deslocaram para outras cidades e estados, desses seis filhos primeiros, alguns vivem aqui com suas famílias e herdeiros. A comunidade vive da agricultura, da pesca de mariscos, da criação de peixes e também da culinária”, comentou Edvan. Para ele, que nasceu ali na comunidade mais ainda criança, foi viver com sua família na cidade de Ipojuca (PE) retornando anos depois, em 2010, para viver no Quilombo de Demanda, “eu não sabia ser quilombola, não tinha conhecimento do que era. Mas voltar a morar aqui, a conhecer e aprender as práticas de agricultura e pesca, os saberes dos quilombolas, me fez perceber e me sentir assim, como parte disso. Aprendi tudo com minha mãe, eu não tinha o que fazer então acompanhava ela na pesca do aratu, marisco, e sururu”, pontuou.

“Ao longo do tempo, no passado ainda presente, muitas mulheres foram mortas e não só mulheres, homens também, negros e indígenas, perseguidos e torturados pelos exploradores. Mas hoje em dia, através da espiritualidade a gente tá resgatando a nossa ancestralidade e relação com esse território, com mais amor, sabedoria e felicidade”, comenta o jovem Hugo Venâncio, de 17 anos. Edvan e Hugo são jovens quilombolas que fazem parte da Comissão de Jovens Multiplicadores e Multiplicadoras da Agroecologia (CJMA), ambos relatam que o conhecimento sobre as práticas e o movimento da agroecologia junto a Comissão, impulsionou suas vidas e a relação que hoje mantém com a sua comunidade. “A agroecologia vem para mudar nossos pensamentos sobre a necessidade da preservação da natureza, do cuidado com o meio ambiente e consigo mesmo. Desde 2017, ano que cheguei na CJMA, a agroecologia tem sido um incentivo para adquirir novos conhecimentos e me reconectar com o meu território”, comentou Edvan.

Foto: CJMA

Juntos os dois jovens organizaram a trilha ecológica no Quilombo de Demanda, como parte da programação do Intercâmbio Agroecológico da CJMA Mata, que aconteceu no final de outubro, em Tamandaré (PE). A experiência com a trilha ecológica já havia sido desenvolvida anos antes a partir de um projeto de formação para juventudes em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o Centro Sabiá, a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco (FETAPE) e a Pastoral da Juventude Rural (PJR). “Nós recebemos muitas visitas aqui na comunidade com as trilhas, pessoas de outros estados e até países diferentes. A gente foi percebendo que a partir disso a comunidade foi ganhando mais visibilidade, foi adquirindo novos conhecimentos também pelas trocas que aconteciam. Com o tempo alguns jovens foram se afastando e acho que em 2017, encerramos essa experiência. Então, esse encontro da CJMA Mata nos deu essa possibilidade novamente de experimentar e protagonizar essa iniciativa”, afirmou Edvan.

“A trilha ecológica é um passeio guiado pela comunidade, onde a gente vai contando e apresentando a história do nosso povo. Desde a chegada da primeira família, do processo de luta para reconhecimento do Quilombo, até os dias de hoje. A visita passa por lugares que contam sobre nossos modos de vida, como o Estuário dos Manguezais onde pescamos os mariscos, os criatórios de peixes, a sede da Associação onde há uma árvore genealógica com as primeiras famílias da nossa comunidade, até os pontos de força e sagrados que nos conectam com nossa ancestralidade. Daí também oferecemos um banho na Bica e algum prato da nossa culinária, tudo de acordo e em diálogo com o grupo visitante. O nosso objetivo é também gerar renda para os jovens e suas famílias.”

As visitas guiadas, trilhas ecológicas, vivências práticas e/ou intercâmbios são iniciativas que promovem pertencimento aos e às jovens, ampliam a visibilidade sobre os territórios envolvidos, seus modos de vida e suas práticas cotidianas. Além de possibilitarem através da autogestão a geração de renda e estreitar os diálogos entre campo e cidade e entre gerações. São espaços que à medida que denunciam as violações sobre os direitos de povos e comunidades historicamente marginalizados e invisibilizados também anunciam a força da auto organização e mobilização popular. Como apontado pela Coletiva de Comunicação da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), “processos de mobilização social, como os engendrados em rede pelo movimento agroecológico, são essencialmente processos comunicativos, por envolverem o compartilhamento de sentidos em busca de “convocar vontades” (TORO & WERNECK, 1996), explicitar problemas vividos e, ao mesmo tempo, anunciar outro projeto de sociedade pautado pelo bem viver e só possível por meio da adesão e participação ampla da sociedade”.

Nessa perspectiva, é importante construirmos diálogos saudáveis entre gerações e fortalecer o reconhecimento da arte, da cultura popular e da ancestralidade como práticas de resistência e resiliência. Assim, como o reconhecimento do protagonismo e do compromisso com a renovação do campo político a partir da força da juventude organizada.

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Nós, do Centro Sabiá, desde 1993 promovemos a agricultura familiar nos princípios da agroecologia. Nossa missão é "plantar mais vida para um mundo melhor, desenvolvendo a agricultura familiar agroecológica e a cidadania". Seu apoio através de uma doação permite a continuidade do programa Comida de Verdade Transforma e outras ações solidárias e inovadoras junto ao trabalho com crianças, jovens, mulheres e homens na agricultura familiar.

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