Direito a ser no campo e na cidade
Porque os movimentos do meio rural precisam olhar para o debate de gênero
Por Débora Britto (Centro Sabiá)
No último mês de junho, a Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) aprovou emenda de autoria do Deputado Estadual Cleiton Collins ao PL 269/2015 que alterou o Plano Estadual de Educação determinando a retirada das abordagens de gênero e educação sexual no plano que orientará as políticas públicas no campo da educação nos próximos 10 anos.
Diversos municípios também aprovaram sanções similares à menção e conceito de gênero nos planos municipais de educação. O que aconteceu em Pernambuco, no entanto, não é um caso isolado, mas se repetiu em outros estados e municípios brasileiros. As propostas, encabeçadas principalmente por parlamentares com declarada orientação religiosa de seus mandatos, foram justificadas com argumentos frágeis e influenciados por interpretações conservadoras por parte dos legisladores.
“Isso vem reforçar um ciclo de desigualdade que já existe na sociedade. A escola deveria ser o local que se pudesse tentar quebrar esse ciclo. Antes, havia resistência tanto de professores, pais, alunos, etc, mas estava resguardado já que estava no Plano de Educação”, explica Juliana Cesar, assessora para projetos internacionais da ONG Gestos, que trabalha com soropositividade, comunicação e gênero.
A compreensão de gênero é conquista importante para os movimentos de direitos das mulheres à medida que reconhece as desigualdades que existem entre mulheres e homens determinadas exclusivamente pelo sexo com que nasceram. Além dessa perspectiva, o debate de identidade de gênero se integra ao movimento de direitos dos LGBTT (sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Transgêneros).
A confusão entre os termos é comum, mas de fácil solução. Quando nascemos, somos identificados pelo sexo com que nascemos: masculino ou feminino. Gênero diz respeito às características que a sociedade atribui ao feminino e ao masculino. Quando falamos de identidade de gênero, reconhecemos que uma pessoa que nasceu, por exemplo, com sexo feminino pode se identificar com características masculinas e, portanto, pode desejar a mudança de sexo, comportamento, etc. A sexualidade, outro termo muitas vezes relacionado, mas não obrigatório, diz respeito a atração que sentimos por pessoas, sejam elas mulheres ou homens, transexuais e transgêneros masculinos ou femininos.
O debate de gênero no campo
Para Verônica Santana, do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTR-NE), é fundamental entender a construção da sociedade brasileira, especialmente como ela se dá no meio rural, para medir como essa decisão pode ser refletida para os e as jovens no meio rural.
Se nas cidades a situação está longe de ser fácil para mulheres e jovens transexuais e transgêneros, no meio rural o cenário pode ser mais desafiador.
“O espaço rural foi fortemente marcado pela tradição patriarcal que subjuga e subalterniza as mulheres. Quando o movimento feminista começa a avançar na superação dessas relações desiguais e na exploração das mulheres, a retirada do termo “gênero” nos planos de educação vem barrar nossas conquistas”, diz ela.
Segundo conta Juliana Cesar, em projeto que a levou a percorrer municípios do interior de Pernambuco, a quantidade de crianças e jovens trans é grande e ao mesmo tempo que começam a se mostrar ao mundo ficam vulneráveis a sofrer violências por serem quem são. “Isso é muito nocivo. Inclusive para o meio rural”, alerta sobre a situação de jovens transexuais e transgêneros no campo. Mais do que nunca, esse sentimento, que é também constatação, deve mobilizar os movimentos rurais e de educação contextualizada a olharem para esses grupos.
Uma das dificuldades de quem defenda os direitos dessa população é a não existência de estatísticas sobre o tema e relacionados. As iniciativas que existem são, em geral, de organizações privadas. A retirada da menção à gênero no Plano Estadual de Educação também contribui para que isso não seja item consultado no censo. “Sem essa referência no plano, as crianças transexuais, transgêneros passam a não existir também para o censo”, ilustra Juliana.
Para Verônica, enquanto parte do movimento de mulheres, ignorar as desigualdades só as fortalece. “Não debater é na verdade silenciar as opressões de gênero”, diz. Segundo o MMTR-NE, o espaço rural é um espaço de diversidade, composto de uma pluralidade de pessoas com distintas identidades em convivência. “A medida que retira o termo despreza a existência dessas identidades diversas, bem como sufoca as muitas expressões dessa diversidade”, completa Santana.
Porque precisamos falar sobre identidade de gênero e educação sexual
O debate precisa chegar às escolas e também aos cursos que formam os professores. Existem casos, ainda, em que a iniciativa de um professor trazer esses temas para o ambiente da sala de aula ser perseguido por outros professores, pais e a própria gestão da escola. “Já existe na prática uma perseguição a professores que colocam em debate temas considerados polêmicos, a exemplo da identidade de gênero e educação sexual. Se você não tem apoio institucional é claro que enfraquece a intenção do professor ou professora. A importância do plano é que era uma política de Estado. Há resistência dentro e fora da escola”, explica Juliana Cesar.
Recentemente, em fevereiro deste ano, a Revista Nova Escola trouxe como reportagem de capa o tema das crianças transexuais e transgêneros e o ambiente escolar – que muitas vezes contribui para a exclusão, estigmatização e não protege as crianças no momento de formação.
Entre apoios e críticas, a iniciativa tem o mérito de trazer o debate para o centro do palco do debate público. Imagem: Reprodução
“Preparar os e as educadores/as do meio rural é um desafio urgente para que a educação perca seu caráter de instrumento de manipulação ideológica e passe a ser uma ferramenta de crítica e liberdade”, defende Santana. A participação da sociedade através de conselhos e conferências também fundamentais para garantir direitos e efetivar a democracia brasileira.
Apenas em março de 2015, transexuais e travestis tiverem reconhecido o direito de serem identificados/as pelo nome social. Através de resolução do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos LGBT determina que os registros em documentos, formulários e sistemas de informações de instituições de ensino de todos os níveis e modalidades devem ter o nome social e os/as estudantes devem ser chamados oralmente pelo nome escolhido.
Apesar das conquistas nos últimos anos, o cenário atual se apresenta cada vez mais ameaças aos processos de diálogo e desconstrução de preconceitos seja na educação, na compreensão jurídica dos direitos das travestis e transexuais brasileiros. “Existe a crescente ameaça do fundamentalismo, que articulou suas forças e orquestrou a retirada do termo em sessões vergonhosas e intolerantes nas câmaras de vereadores de todo o país, além de continuamente violar os direitos humanos”, alerta Verônica.
Para barrar a investida das bancadas evangélicas nos legislativos nacional, estudais e municipais, Cesar lembra o papel de cobrar dos poderes executivos que se coloquem no debate. “Não vimos o governador, nem o prefeito da cidade do Recife falar nada sobre o tema. É isso que eles acham o melhor para a educação?”, provoca. “Isso [a aprovação da emenda] não significa que fica proibido discutir questão de gênero pela sociedade. A gente sempre pode pensar novas leis para incluir isso no plano. É preciso lembrar que as diretrizes para gênero e educação sexual continuam no Plano Nacional de Educação”, incentiva Juliana.
Manifestações de repúdio – Em Pernambuco, Associações, Fóruns e Articulações de defesa de direitos publicaram nota de repúdio aos parlamentares que votaram a favor da aprovação da emenda. Segundo o texto, a aprovação da emenda traz prejuízos a políticas e programas de inclusão de travestis e transgêneros, além daqueles voltados à formação dos/as profissionais da educação, à saúde e aos direitos reprodutivos de jovens e adolescentes (hoje os mais afetados por Doenças Sexualmente Transmissíveis, como a AIDS) e sofrem as consequências de gravidez não planejada e indesejada. Confira aqui a nota e a lista de deputados estaduais que votaram a favor da emenda abusiva o conteúdo do manifesto.
Conheça mais sobre o tema através das seguintes reportagens:
No Corpo Errado [Carta Escola]: acesse aqui
Educação Trans: clique aqui
Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas [Unesco]: clique aqui
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