Bancos de sementes comunitários representam um outro nível de segurança alimentar
“Não só porque [estas tecnologias] garantem uma segunda reserva para as famílias, mas também porque promove uma gestão e um debate comunitário”, diz Alexandre Pires
Com a seca, as famílias terminam se alimentando das sementes estocadas em casa | Stefanya Neves / Arquico: Terra Viva
Por Verônica Pragana (ASACOM), com colaboração de Heber Pedroso (Comunicador popular da ASA) no site da ASA Brasil
“Muitas vezes ficamos sem sementes pra plantar. O inverno era muito curto. As sementes que a gente tirava era muito pouca. E muitas vezes, por não ter dinheiro pra comprar [alimento], a gente precisava colocar a semente no fogo, tinha de comer e ficava esperando as sementes do governo.” Esse relato da agricultora Maria José de Souza Silva fala de um passado não tão longíquo da comunidade quilombola Feijão, na zona rural de Mirandiba no Sertão pernambucano, onde mora.
Mazé, como é conhecida, continua: “O poder aquisitivo era muito pequeno, [a comunidade] não tem muitas posses. Hoje não, melhorou o padrão de vida por conta de outros projetos na comunidade [e de] outras práticas também. Isso melhorou a segurança alimentar, o conhecimento e a valorização da pequena produção que a gente tem.” Um desses projetos que Mazé se refere é o Programa Sementes do Semiárido, lançado pela ASA no início do ano e que estimula a ampliação da estratégia de estocagem de sementes do âmbito familiar para o comunitário em todo o Semiárido. O programa vem consolidar o recém criado banco comunitário de Feijão.
O município de Mazé, Mirandiba, integra a larga faixa (60%) de municípios do Semiárido com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre muito baixo a baixo. Junto a Mirandiba (IDH 0,3619), está Olivedos, situado em terras do Cariri paraibano, que ostenta um índice ainda menor: 0,3059.
Na zona rural de Olivedos, na comunidade de Riacho do Meio, mora a família de outra Maria José – Maria José Pereira de Araújo – e José Carlos da Silva. O casal, que faz parte do Coletivo Regional das Organizações da Agricultura Familiar, que envolve 11 municípios do território do Cariri, é engajado na defesa das sementes crioulas. Segundo eles, um dos maiores desafios para a casa de sementes comunitária é convencer os agricultores e agricultoras a serem sócios/as numa época como a atual, quando se entra no quinto ano contínuo de seca na Paraíba.
“O difícil é conscientizar as pessoas a guardar as sementes crioulas”, conta dona Maria José | Foto: Arquivo Patac
“O difícil é conscientizar as pessoas a guardar as sementes crioulas. Devagarzinho, a gente consegue”, conta dona Maria José, num esforço para tentar evitar a erosão genética das sementes de sua comunidade, como aconteceu na de Mazé. Na verdade, os estoques familiares não são só para o plantio na época da chuva, mas servem também como reserva para os momentos em que a colheita no campo não for boa.
No bojo dos argumentos de Maria José e José Carlos para as outras famílias agricultoras há a explicação de que as sementes que o governo distribui não são de boa qualidade. “Os pacotes que recebemos pedem que compremos insumos que degradam os solos. Quando chover, vai envenenar as águas. Se plantarmos as nossas sementes, não vamos precisar comprar nada”, atesta convicto seu José Carlos.
Além da seca, outras ameaças – “Não temos garantia da origem das sementes distribuídas pelo governo. No ano de 2013, por exemplo, chegaram a distribuir sementes de milho do Sudoeste. Nada nos garante que não eram transgênicas porque não tem uma política dos estados, nem do governo federal, que isenta a possibilidade de distribuição destas sementes”, afirma Alexandre Pires, coordenador da ONG Centro Sabiá, membro da Coordenação Executiva da ASA Brasil pelo estado de Pernambuco e representante da ASA na Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO). O Sudeste, assim como o Sul, são regiões onde o modelo de agricultura convencional , que traz no seu bojo a substituição das sementes crioulas pelas variedades comerciais, se difundiu de forma mais generalizada do que no Semiárido.
Segundo Alexandre, há outros elementos que aguçam a inadequação das sementes distribuídas à realidade das famílias agricultoras, como o fato de serem originárias de outras regiões e, por isso, não adaptadas às condições climáticas e geológicas do Semiárido. Outro fator desfavorável à agricultura familiar é a pouca variedade de sementes disponibilizadas pelo governo. Essa redução ameaça à agrobiodiversidade da agricultura familiar. “Quando se faz um mapeamento numa única comunidade, encontramos 15, 20 variedades de feijão, de fava, de milho”, conta Alexandre, acrescentando que o ideal seria a compra de sementes locais produzidas pelos/as agricultores/as para distribuir no próprio território.
Esta realidade se agrava ainda mais com os perigos reais de contaminação das sementes crioulas pelas transgênicas através do processo de polinização pelo vento. No Brasil, são produzidos 20 tipos de milho transgênicos, cinco de soja e 12 de algodão. Outra ameaça é o domínio do mercado mundial de sementes por grandes empresas como a americana Monsanto e a suíça Syngenta, produtoras de poucas variedades comerciais, dependentes de pacotes químicos para serem cultivadas. Além disso, são sementes manipuladas geneticamente para não germinarem no segundo plantio e gerar dependência do agricultor/a às empresas.
Estocar e resistir – Diante do desafiador contexto mundial e nacional, a prática de guardar sementes pelas famílias agricultoras do Semiárido é um dos elementos que garante a existência e resistência da agrobiodiversidade na região. “Os agricultores sabem que, sobretudo em função do regime irregular de chuvas, a segurança de suas lavouras depende do emprego de sementes altamente adaptadas, bem como do manejo de uma grande diversidade de espécies e variedades. Uma lavoura que não vinga porque foi plantada com uma semente não adaptada e não resistiu à seca pode representar a fome da família”, atesta Flávia Londres, integrante do Grupo de Trabalho em Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
“Os bancos de sementes comunitários representam um outro nível de segurança. Não só porque garante uma segunda reserva para as famílias, mas também porque promove uma gestão e um debate comunitário, o que significa fortalecer o olhar para o local, para a comunidade que, de certa forma, fortalece a individualidade ao reafirmar a contribuição destes sujeitos políticos neste coletivo”, explica Alexandre Pires.
Seu Tico, da comunidade Bom Jesus de Cima (BA), assumiu a responsabilidade de montar um banco comunitário | Foto: Ronaldo Eli / Arquivo: Asacom
Seu Francisco Alves Teixeira, da comunidade Bom Jesus de Cima situada no município baiano de Bom Jesus da Serra, é um dos agricultores familiares que, desde sempre, cuida e guarda as sementes cultivadas pela família. “Desde quando eu comecei a trabalhar na roça, guardo sementes. Tem tempo já, comecei quando eu era solteiro, mas não tinha essas ideias de juntar as garrafas, eu só guardava, colocava num saco e com poucos dias apurava”, contou ele quando sua experiência como guardião foi sistematizada na edição 1339 do boletim O Candeeiro, da ASA.
Depois que sua sogra Gessi participou de um intercâmbio promovido pelo Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), em Minas Gerais, e encheu os olhos ao conhecer a experiência de um banco de sementes comunitário, seu Tico, como é conhecido, assumiu a responsabilidade de montar um banco comunitário.
Em novembro de 2013, no segundo ano de seca, o banco já armazenava cerca de 70 tipos de sementes de grãos, frutas, hortaliças e ervas medicinais, vindas de toda a comunidade. “A vizinhança toda traz sementes pra eu guardar, e aí fico responsável de cuidar, guardar. E, aí, é só precisar que vem aqui e busca. Eu anoto quem traz pra eu guardar, fica tudo arrumadinho”, explica seu Tico.
Que bom ter você por aqui…
Nós, do Centro Sabiá, desde 1993 promovemos a agricultura familiar nos princípios da agroecologia. Nossa missão é "plantar mais vida para um mundo melhor, desenvolvendo a agricultura familiar agroecológica e a cidadania". Seu apoio através de uma doação permite a continuidade do programa Comida de Verdade Transforma e outras ações solidárias e inovadoras junto ao trabalho com crianças, jovens, mulheres e homens na agricultura familiar.