A “Crise hídrica” existe?
Além de ser responsável por 72% do uso da água no Brasil, a agricultura aos moldes do agronegócio tem outras consequências como o esgotamento e desertificação dos solos. Foto: Internet
A relação do modelo de desenvolvimento pautado no agronegócio com a escassez de água e as estratégias de convivência com o semiárido que vem transformando realidades
Por Débora Britto (Centro Sabiá)
Nos últimos meses, os espectadores dos telejornais nacionais voltaram a se encontrar com a seca, imagem que há muito está presente no imaginário comum e amplamente disseminado pela mídia. Renovado, sob a alcunha de “crise hídrica”, a má gestão de recursos hídricos chegou às conversas nos ônibus, na escola, no trabalho, assim como a falta de água chegou às torneiras das grandes cidades.
Mas se ouviu, nos grandes veículos de comunicação, falar sobre o modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil na gestão das águas por parte dos entes federativos sejam municipais, estaduais e da União. Até hoje há entendimentos de que a seca deverá ser combatida com grandes açudes, projetos de irrigação, transposições e, quando tudo isso der errado, com carros – pipa.
Contudo, essa ideia vem sendo desconstruída para a compreensão de que é impossível combater algo que existe como característica de regiões. Para isso, movimentos sociais do campo iniciaram o debate sobre convivência com a seca que há anos tem transformado vidas no semiárido brasileiro. Esta convivência, diferente das imagens de miséria ainda reproduzidas em larga escala em mídias nacionais, passa necessariamente pela vida com dignidade, Soberiania e Segurança alimentar e nutricional e a possibilidade social e econômica de permanecer no campo. A “crise hídrica”, portanto, é questionada por segmentos que aprenderam há muito que é possível conviver com a seca.
Ainda assim, recentemente assistimos à transposição do Rio São Francisco e à construção da barregam de Belo Monte, duas empreitadas associadas à lógica do “desenvolvimento pelo desenvolvimento”. Além de ser responsável por 72% do uso da água no Brasil, a agricultura aos moldes do agronegócio tem outras consequências como o esgotamento e desertificação dos solos (que é seguida pela escassez estrutural de água).
A reflexão sobre a redução contínua da quantidade de água disponível atingiu em cheio os centros urbanos no último ano e segue até hoje, mas é preciso ir além. Para Carlos Magno, coordenador do Centro Sabiá no território do Agreste, a escassez de água já não depende mais da seca ou da estiagem. A crise hídrica que afeta campo e cidade, segundo ele, é real e está materializada na redução gradual da água disponível em todos os locais, seja no solo, nos mananciais subterrâneos e nos rios e lagos (a face mais visível).
O modelo de desenvolvimento do agronegócio é fator determinante para a situação de acesso e disponibilidade de água de uma região. Em Pernambuco, por exemplo, o Agreste é atualmente a região que mais sofre com a “crise hídrica”. “O Agreste hoje está à beira de um colapso hídrico mais do que o sertão. Sobretudo pelo modelo de desenvolvimento. Todas as plantas foram retiradas para fazer pasto para bovinos. Gramínea na primeira seca morre”, afirma.
Da escassez à crise
O fenômeno não é específico do caso pernambucano, mas mundial. Estudo realizado em 2013 pela ONU (Organização das Nações Unidas) intitulado “A Economia da desertificação, da degradação e da seca” aponta que até 5% do PIB agrícola mundial é perdido anualmente por causa da degradação e desertificação do solo.
O relatório expõe como a perda de solo fértil tem aumentado em função, principalmente, dos processos de desertificação que “impermeabilizam” o solo que não consegue mais absorver a água das chuvas. “Quando chove no solo seco é como se jogasse água no concreto, ela escorre e vai embora levando a terra”, relata Magno.
Alguns países chegariam a perder 2% de solo fértil ao ano. A crise hídrica, portanto, associada aos processos de desertificação, tem consequências para além do fator econômico. A relação íntima com a fome, dada a dificuldade extra para a produção agrícola evidencia isso. Seus fatores agravadores, por sua vez, identificam-se com as práticas usuais do agronegócio com o monocultivo, a pecuária extensiva.
“A falta de politicas adequadas interfere diretamente na economia e, por consequência, na segurança alimentar das famílias agricultoras e das pessoas em situação econômica e social de maior vulnerabilidade”, aponta Magno.
Técnicos realizam um estudo de SAF no município de Cumaru, no agreste pernambucano. Foto: Acervo Centro Sabiá
Combate à desertificação
O Projeto Terra de Vidas, desenvolvido pelo Centro Sabiá em parceria com o Caatinga e apoiado Fundo Nacional de Mudanças Climáticas, é uma das ações que busca recuperar o ecossistema da Caatinga a partir do combate aos processos de desertificação com a implantação de Sistemas Agroflorestais (SAFs). O projeto é desenvolvido no sertão do Pajeú e Araripe e no agreste pernambucano desde 2013.
Magno explica como os SAFs são importantes para o trabalho de recuperação não apenas da vegetação da caatinga, mas também do solo e da água apenas na dimensão física. “A concepção, o formato dos sistemas agroflorestais tem por base a conservação de solos e de água. No solo, cria como se fosse uma faixa de esponja onde a água á absorvida e armazenada”, exemplifica.
Para recuperar caatinga, no entanto, é preciso primeiro entender como caatinga funciona. Isto significa reconhecer que aquele ecossistema é uma floresta (apesar de visualmente não se parecer com a floresta do imaginário popular) com características de funcionamento próprio. “Precisa respeitar a caatinga para implantar um SAF. Eu não transplanto SAFs. A partir dos recursos locais que são da natureza dali eu posso fazer um SAF no sertão do Araripe com cactos, ou agreste com forrageiras e eu posso fazer um na zona da mata com frutíferas e plantas da Mata Atlântica”, explica.
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